Tudo indica que, em 2026, teremos uma adaptação da Odisseia, obra de Homero, por Chistopher Nolan. Não será a primeira adaptação da Odisseia para cinema ou TV, mas é certo que terá um peso nessa arte-indústria, pelo simples fato de ser escrita e dirigida por Nolan, além de contar com um elenco interessante.
Certo também é que a Odisseia é uma obra difícil de ser adaptada para o cinema, sobretudo para o gosto ocidental moderno. Trata-se de uma obra poética, escrita para ser cantada, declamada, com versos calculados em cada sílaba, cheia de mitos, cacoetes e costumes que não fazem o menor sentido, no modo mais estrito, para a nossa realidade vigente. Pensando nisso, trago uma lista de desafios que Nolan — ou qualquer um que o tente —, possivelmente encontrará para adaptar Odisseia.
Higienização vs. Fidelidade à obra
É quase uma certeza que será necessária uma “higienização” na obra, ou seja, dar uma limada, uma limpada e roupagem estética ao gosto do freguês. A dosagem correta é a grande questão que, sinceramente, creio que o grande público pouco se importará, desde que tenha muita ação e dopamina. Certamente uma dosagem exagerada de higienização poderá incomodar a crítica mais preciosista, que terá sua importância, e amantes da obra original. A higienização da obra é ponto central na adaptação — veja, por isso chama-se “adaptação” —, o restante é desdobramento desse processo.
Poesia fantástica vs. realismo histórico
Pergunto-me qual será a abodegam predominante de Nolan. Encontrará um equilíbrio entre o mitopoético e o “realismo” “materialista” e “científico” que o cinema atual pede? Nolan é o cara das grandes ficções científicas — Interestelar, Inception e Tenet, por exemplo —, e a tentação de fazer algo nessa linha pode ser forte. A fantasia — para nós é fantasia — da Odisseia conta com a voz do poeta, do aedo, de um narrador que recebe uma tradição, que de certa forma aparece, de modo simbólico e metalinguístico, na obra. Como ficará a voz do poeta? E o lirismo de seus escritos? Para onde irá toda a poesia e o quanto dela restará, do roteiro à pós-produção? Nesse processo, a poesia será como Odisseu, vivendo uma aventura e sofrendo em meio a desafios, tentando retornar para casa.
Linha do tempo e contexto
Se consideramos a Odisseia desde a partida de Odisseu — ou Ulisses, nome latino — para Ílion — ou Tróia —, temos um período de 20 anos, 10 apenas de guerra e mais 10 de jornada. A obra trata majoritariamente da jornada, com poucas pinceladas da guerra, que é narrada na Ilíada, mas e o contexto? É normal que obras épicas iniciem in medias res — no meio da ação —, mas o filme seguirá o padrão épico? Quanto a isso, não é desafio para nenhum cineasta experiente, desde que dê o contexto de modo satisfatório, principalmente aos menos experimentados na obra original ou com pouco conhecimento dela.
Odisseia tem muitos flashbacks, memórias, profecias; o quanto disso resistirá à higienização? Só vendo para saber. O desafio pode não ser dos maiores, mas não deve ser subestimado.
Ideal masculino ocidental moderno e idealizado
Imagino — não por acaso, pois vi e ouvi de alguns — que a atração cinematográfica atraia, em maioria, um público masculino, sedento por ação e aventura, coisa que os épicos costumam oferecer em boa dose. Odisseu é, sim, um guerreiro, e dos bons, entra e uma luta para vencer, maneja bem o arco, a lança e a espada, mas Odisseu é mais do tipo estrategista, que ganha na inteligência. A depender de como Nolan distribua os momentos de ação com os longos momentos de diálogos, pode frustrar ou agradar ao público masculino. Mas aí que entra novamente a higienização: Odisseu é um chorão, é enganador, mentiroso e cheio de contradições. Ele ama Penélope, mas dorme com Calipso e Circe, quer voltar para casa, mas se deixa seduzir pelas aventuras, que aparecem em sua frente, perdendo o foco. Essas características não são tão esperadas nos “heróis clássicos” modernos, dos quais se esperam grandes feitos de honestidade e virtude. Não que o herói da Odisseia não tenha suas virtudes, mas guarda também suas dicotomias.
Arrisco em dizer que, na obra original, há mais descrições de Odisseu chorando que em combate. Chora por medo, saudade, ansiedade, compaixão, entre tantos motivos. No cinema atual, a masculinidade costuma ser representada de forma estoica, emocionalmente contida. Um herói lacrimejante pode gerar estranhamento, a não ser que seja bem trabalhado. Odisseu, mesmo forte e muito bom em combate, seria um misto de Rambo com Jack Sparrow. É preciso mostrar essa astúcia sem o fazer parecer caricato.
Na Ilíada, as primeiras palavras do poeta, ao invocar a Musa e dar as características do herói principal, que é Aquiles, temos as seguintes qualidades: colérico, isto é, irado, e alguém que provocou sofrimento a muitos. Na Odisseia, ao invocar a Musa e descrever o herói, temos as seguintes características: astuto e sofredor. Odisseu lutou? Sim, mas Aquiles lutou mais. Aquiles sofreu e chorou? Sim, mas Odisseu sofreu e chorou muito mais. Os amantes do herói Aquiles poderão ter uma experiência diferente, se assim Nolan consentir; ou ele seguirá as regras de mercado e oferecerá um bom “produto” para a masculinidade ocidental moderna, idealizada e desejada, fruto da própria indústria do cinema? Adendo: há ainda, em minoria, os que odeiam a representação dessa masculinidade desejada.
Intervenção e protagonismo dos deuses
Eis uma grande pedra na sandália da literatura grega: a intervenção constante dos deuses em tudo. O cinema moderno tende a privilegiar protagonistas autônomos, que costumam quebrar regras, inclusive. Como equilibrar destino divino e liberdade humana numa obra que basicamente se sustenta no protagonismo da deusa Atena? Ouso a dizer que Atena pode ser vista como protagonista oculta da obra, com uma ajudinha de Zeus, claro.
Um subtítulo que está sendo usado para o filme é “desafie os deuses”, um indicativo que, em alguma medida, teremos a presença de divindades. O grande causador de males para Odisseu é Poseidon, por ter nosso herói cegado o ciclope Polifemo, um de seus filhos. A possível ausência de divindades seria uma perda grande para a narrativa, mesmo o subtítulo indicando a presença. Resta sabermos o que Nolan representará como deuses, se formas da natureza, de modo mais simbólico e místico, ou como seres reais e interventores, dentro da história.
Interessante vermos que Aristóteles, em sua Poética, coloca Homero como o grande poeta grego em certo momento e, em outro, aconselha os poetas a evitarem o recurso do deus ex machina, sendo que seu poeta favorito era o mestre das resoluções simples vindas dos deuses. Às vezes penso até que foi uma crítica velada do filósofo a Homero — como Pascal, criticando o amor extremo e ofuscante dos judeus aos símbolos e aos ritos, em época em que o semelhante ocorria.
Não consigo ver Nolan usando muito — e talvez nem pouco — o protagonismo dos deuses, como personalidades autônomas e interventoras, seria muito anticlímax para os “consumidores” da “indústria”, que aguardam um tipo diferente de heroísmo.
Quantidade de personagens
Para um livro ou série, muitos personagens podem não ser um problema, mas para um filme, que goza de menos tempo para se bastar, o excesso pode confundir. A Odisseia conta com muitos personagens de relevância, ao longo da jornada de Odisseu e, inclusive, no plano de fundo de sua jornada, em Ítaca, em especial, terra de Odisseu. Temos companheiros, deuses, esposa, filho, pretendentes, reis e suas famílias, profetas, servos e até animais com importância para a narrativa.
Nesse ponto o corte é quase certo. O que também é quase certo é que a adaptação de Nolan será uma boa obra cinematográfica, resta saber se, enquanto adaptação, de modo estrito, o será também. Espero que muitos se voltem ao poema épico, depois do sucesso do filme, coisa comum de acontecer, quando uma adaptação faz sucesso. A Odisseia é sempre proveitosa, prosseguimos mais sabedores quando passamos por ela e, por isso, deixo aqui as palavras derradeiras de Frederico Lourenço, em seu comentário à Odisseia:
“O que acontece a cada leitor da Odisseia quando chega ao fim do poema é algo que, na verdade, as Sereias do Canto 12 anteviram (12.188): ‘depois de se deleitar, prossegue caminho, mais sabedor’.”
Mas e aí, in Nolan we trust?