Histórias infantis ou juvenis costumam ser subestimadas, e autores desse gênero podem ser tratados como menores, dentre os artistas das palavras. Para falar a verdade, já li histórias infantojuvenis muito pobres, voltadas para o puro entretenimento, por outro lado, conheço fábulas e contos impressionantes, com lições, ensinos, sutilezas estéticas e filosóficas que mereceram resistir ao teste do tempo, a exemplo das fábulas de Esopo — vide “As árvores e o machado” que nos mostra como o poder é usado para destruir àqueles que o concederam — e La Fontaine, os contos reunidos e adaptados dos irmãos Grimm — como “O Flautista de Hamelin” — e, não posso deixar de mencionar o dinamarquês Hans Christian Andersen (1805–1875), autor dos conhecidos “O patinho feio”, “A roupa invisível do rei” e “A pequena sereia”.
Mas o texto de Andersen que trago à baila é “A ave fênix”. Um conto de várias camadas, que pode agradar desde a imaginação pueril até gente carrancuda com o mais elevado fetiche literário. Trata-se da história — ou estória — da poesia, da arte, da inspiração, da beleza, e tudo o que corresponda aos dons da poesia, num sentido mais lato.

Para quem ainda não leu o conto, acabo de estragá-lo, em partes, pois revelo o seu final e furto o prazer do plot twist, pois somente a última palavra do texto manifesta o seu caráter: “No Jardim do Paraíso onde tu nasceste perto da árvore do conhecimento, da primeira rosa, fostes beijada por Deus e ele lhe deu seu nome: Poesia.”
Como podemos ver, o autor nos leva ao princípio da Criação, para o Jardim do Éden, onde e quando nasceu a poesia, debaixo da árvore do conhecimento, por meio de uma rosa. Desde a antiguidade a poesia é vista como forma de sabedoria, não à toa Rafael pintou a poesia (Parnaso) ao lado da filosofia (Escola de Atenas), da teologia e da justiça, na Stanza della Segnatura, localizado no Vaticano.
Mas aí vem o pecado, Adão e Eva são expulsos do paraíso. O texto bíblico — Gênesis 3:24 — diz que Deus colocou querubins com espadas flamejantes para guardar o paraíso e, segundo Andersen, uma centelha da espada flamejante caiu no ninho do pássaro e o matou. É como se o autor dissesse que o pecado original tivesse destruído até mesmo a arte, desde o começo, acabada ainda de nascer. E nisso acreditam todos os cristãos e crentes na Criação divina. Ainda que por acidente, ou de modo indireto, como preferir o leitor, as ações de nossos pais corromperam a poesia terrena, que é mãe das artes, que é linguagem solene e embelezada.

Não foi o fim de tudo, bem sabemos, pois a ave fênix sempre ressurge, e ressurgiu, segue o conto, e continua a queimar e a ressurgir ao longo dos séculos, assim como nossa inspiração criadora, que floresce, encanta, apaixona, arrefece, cansa, esgota, corrompe, escarnece e é superada, minguada, queimada — às vezes até literalmente queimada —, até ressurgir de novo, e de novo, amiúde!
E a ave fênix foi ao longo da história cativando crianças, adultos, ricos e pobres, com suas várias formas e manifestações, ora como borboleta, ora como corvo ou cisne, mas sempre voando até os confins da terra — como o Evangelho —, presente desde o hinário cristão até o hinduísmo. Presente entre os atores, desde Téspis, o primeiro de todos, aos “imortais”, como Shakespeare. A todos a poesia encontra, mesmo que nem sempre a percebamos. Na tradução de Alice Klesck temos assim: “Ave Fênix! Não a conheces? […] veio em todo o seu esplendor do Paraíso, e tu talvez lhe tenha dado as costas, para contemplar o pardal de enfeites dourados nas asas.” Ah, e como são muitos esses pardais que nos distraem. Muitos.

Convido-te à leitura de A Ave Fênix, de Hans Christian Andersen, a deixar-se tocar pela narrativa mítica, poesia em prosa e tratado delicado sobre a eternidade da arte. Ler essa história é como escutar a própria poesia batendo asas sobre a memória do mundo — uma oportunidade de reencontrar, em meio às cinzas do cotidiano, o sopro imortal que nos faz criar, sonhar e continuar.

Abaixo, o conto na tradução do H.C. Andersen Instituttet:
Uma Ave: Fênix (ou A Ave Fênix)
Hans Christian Andersen
O lugar… o Paraiso, bem no meio do jardim do Eden estava a Árvore do Conhecimento. A seu pé, uma roseira começava a tomar forma. Da primeira rosa nasceu um pássaro, belo, colorido, iluminado e com cantar maravilhoso.
Vocês sabem que tudo era maravilhoso no Paraiso, mas quando Eva deu a maçã para Adão comer, ambos foram expulsos do Paraíso. A partir de então, um anjo com uma espada de fogo começou a vigiar a entrada daquele jardim. Uma faísca dessa espada caiu no ninho da ave. A Ave morreu no meio das chamas, mas do único ovo que ficou no ninho, uma nova ave voou, uma nova Fênix, tão linda e esplendorosa como a outra.
Segundo a lenda, a Fênix faz seu ninho na Arábia e a cada cem anos incendeia seu próprio ninho morrendo dentro dele. Porém um único ovo vermelho, chamuscado pelo fogo, sobrevive e dele sai uma nova ave, uma Fênix, magnífica, majestosa, colorida, voando suavemente, iluminando e encantando com seu canto maravilhoso. Um dia ela irá repetir a sina de sua mãe.
A Fênix pode ser vista à cabeceira do berço de um recém-nascido, quando a mãe embala e canta para ele dormir, ela pode ser vista voando pelas regiões mais pobres e distantes, alegrando aqueles abandonados pela sorte com seu canto suave. Por onde passa deixa um rastro perfumado de jasmim.
Das regiões mais quentes, às regiões mais frias como na Lapônia, onde brilha o sol da meia noite e onde se pode assistir a um dos mais belos espetáculos de luzes, a Aurora Boreal, a Fênix pode ser vista e ouvida. Nos pouco dias de verão, na Groenlândia, ela pousa suavemente sobre as flores amarelas. Visita as minas de cobre de Fahluns, na Suécia, e as de carvão na Inglaterra. Enquanto os mineiros cantam salmos para espantar seus males podem avistá-la com suas cores vivas.
De lá voa para o Ganges onde pousa sobre uma flor de lótus sobre as águas santas. Os olhos das meninas Indus brilham ao vê-la.
A Fênix, você nunca ouviu falar dela? A Ave do Paraíso, lembra o canto sagrado do cisne. Ocupa um lugar entre as alegorias teatrais, às vezes comporta-se como um corvo sacudindo a poeira de suas asas. Aparece nos emblemas dos cantos dos poetas islandeses sob a forma de um cisne. Voa de um lugar para outro, agora está sob os ombros de Shakespeare como se fosse um dos corvos de Odin, sussurrava aos ouvidos de uns e de outros a palavra Imortalidade e de novo voava sobre os salões de Wartburgs entoando canções de festa.
A Fênix, você nunca ouviu falar sobre ela? Ela cantou a Marselhesa e você beijou a pena que caiu de uma de suas asas. Sua cor era maravilhosa, lembrava o paraíso, talvez você não a tenha visto pois estava atento aos pardais que voavam por perto.
A Ave do Paraíso, revive a cada 100 anos nascida das chamas e morta pelas chamas, por isso ressurge das cinzas. Sua figura enfeita os salões dos nobres enquanto voa solitária pelas terras da Arábia: a ave solitária dessas terras.
No Jardim do Paraíso onde tu nasceste perto da árvore do conhecimento, da primeira rosa, fostes beijada por Deus e ele lhe deu seu nome: Poesia.
