Alerta de duplo spoiler! — “Coringa: delírio a dois” é quase que uma remontagem de Dom Quixote e eu posso demonstrar: Dom Quixote representa o louquinho, deslocado da realidade, transforma moinhos de vento em monstros perigosos, como fazem as cabeças repletas de ideologias de hoje, não é mesmo?
Toda essa catarse foi inovadora e poderosa. O autor, Miguel de Cervantes, trouxe grande complexidade psicológica ao personagem, o que foi alvo da crítica, por motivos imagináveis. Teve até um imitador do autor que escreveu uma obra apócrifa com o personagem.
Cervantes resolveu publicar uma segunda parte, canônica. E aí que está: Cervantes subverte tudo, como fez Coringa 2. O próprio autor torna-se personagem da obra — através de um alter ego, o narrador Cide, que faz intervenções diretas na obra, traz fatos da vida real e até tretas reais, como indiretas ao autor imitador etc. —, aponta a Dom Quixote a sua loucura e a origem desta: ler fantasias demais. Os louquinhos de hoje leem muita fantasia também.
Qual é o fim de Dom Quixote? O retorno para casa, assumindo sua loucura, voltando à realidade e… morre. Sim, o autor-personagem mata o louco catártico. Não é uma morte sangrenta como a de Coringa 2, mas morre tranquilamente entre os seus entes queridos. Não sei ao certo as razões que levaram Cervantes a matar Dom Quixote, mas posso adivinhar o porquê de repetirem a fórmula com o Coringa. O personagem louco virou herói em um mundo enlouquecido. Toda a catarse libertadora tem um potencial perigoso quando não há clareza. Resolveram dar essa clareza: Coringa é um louco perigoso e precisava ter um fim. Seus imitadores são maus. Simples assim.
Loucura em tal contexto é fraqueza, não força. Ressentimento é destruição e seus frutos são amargos e venenosos. O paralelo entre Dom Quixote 2 e Coringa 2 não é perfeito, mas a fórmula me parece a mesma: apontar a loucura como maligna, mandar recados aos imitadores e dar fim ao louco, que não tinha nada de herói, ainda que forçasse a barra.

Publicado no Substack em 11 de outubro de 2024