Crônica, Texto

Demon Slayer e o mal da “geração 30 segundos no 2X”

O anime fenômeno Kimetsu no Yaiba — Demon Slayer — representa muito bem, em vários aspectos, a nova geração, mas não somente a nova geração, também ao espírito da nova geração, que afeta até mesmo aqueles de gerações passadas. O anime é sem enrolação, sem muita explicação, em comparação com outros animes clássicos, como Naruto e Dragon Ball, é dinâmico, “brilhoso”, saturado, estimulante. A narrativa é sem rodeios, o que agrada uma turma e incomoda outra, e esse é o ponto que trago.

Sou da turma que gosta do anime, mas que gostaria ainda mais se ele tivesse uma narrativa mais ampla, com mais explicações, com mais “história” na história. Penso que as lutas sejam as consequências de histórias que se cruzam: personagem A tem uma história que se choca com a história do personagem B, e há luta, conflito. Ao que parece, muitos prefeririam mais lutas, ainda que com menos contexto e menos razões.

Chegamos ao absurdo de, pelo simples fato de um vilão ter motivações explicadas, haver reclamações, sem falar na confusão do público entre “motivação” e “justificação”. Sim, passamos por longo tempo de justificação da maldade de personagens, mas isso não é desculpa para um embrutecimento mental e um completo esvaziamento e empobrecimento das histórias. Entregar as motivações de um vilão não é justificar a vilania, ou seja, tornar a vilania justa. Entregar a motivação do vilão é mostrar o que motiva a sua vilania, é dar complexidade, e riqueza a uma obra, é um desafio artístico. Um bom vilão eleva a obra, e um bom vilão precisa de um bom background. Claro, às vezes a diferença entre “motivação” e “justificação” encontra-se numa linha tênue e até subjetiva, a depender de como a narrativa e os demais personagens tratarão os motivos, se romantizam, se condenam, se “engolem” ou rechaçam etc.

A “geração 30 segundos no 2X” morreria diante de uma peça de Shakespeare ou de maratonar O Senhor dos Anéis? Tenho amigos mais velhos que, durante um filme ou série, precisam ser estimulados nas redes sociais nos momentos mais “baixos” da obra. Isso mesmo, rolam o feed enquanto a história, que dá fundo e razão a tudo, acontece. E assim ficam, até a obra “assistida” em segundo plano se tornar mais interessante e dopaminérgica.

Recentemente houve o lançamento do filme de Demon Slayer Castelo Infinito, e pude ver tal queixa de modo recorrente: “o filme só tem um defeito: tem muita história — flashback, no caso.” Como escritor, fico escandalizado ao ver pessoas se queixando por uma obra ter “história” na história. O que precisam? Que durante uma cena de flashback, ou conversa mais profunda, a tela seja dividida em duas partes, de um lado tenha a narrativa no 2X e do outro vídeos “satisfatórios”?

É um anime de lula, mas não se luta por nada, a menos que sejam os personagens rebeldes sem causa, o que não é o caso dos caçadores de onis. Um futuro formado pelos vícios dessa geração será o verdadeiro castelo infinito. Ou se educam para amarem mais o tempo das narrativas cinematográficas, dosando o fetiche dopaminérgico, ou terão as próprias vidas como enfadonhas, e viverão correndo feeds em busca de prazer e conforto emocional, que geralmente vem em forma de nostalgia.

Não se trata de separar arte da vida real, pois arte se faz com pessoas reais, para pessoas reais fruírem em vida. “Consumir” arte é viver, é aprender e educar-se, e o modo como se faz, traz resultados distintos. É por isso que nos importamos com a arte e como ela é feita, pois é sobre vida, realidade e futuro. Isso nos leva a outro problema: o público não quer mais arte, quer produto.

O cinema sempre viveu um dilema de ser, ao mesmo tempo, arte e produto de um mercado. A questão é que, a meu ver, o próprio público atual quer somente o produto, com exigências de mercado, enquanto rejeitam a arte. A politização aberta do cinema também causou um embotamento duplo: um lado quer um produto de muita propaganda política, para agradar seu viés, e o outro, em estado constante de alerta, acaba vendo tudo como ameaça, moinhos de vento se tornam dragões, e exigem um produto também que agrade o seu viés. No final é isso, o público quer produto cinematográfico, previsível, que não provoque, apenas agrade e dê prazer barato. Isso tudo deixa a indústria e os artistas do cinema numa situação ainda mais paradoxal do que era, criando uma crise de identidade. Afinal, cinema é arte ou produto de mercado? A resposta é clara: ambos. Achar esse equilíbrio é arte pura, que somente um mercado saudável será capaz — do produtor ao consumidor.

Oposição cega gera uma espécie de ressentimento até ao que é bom. Se lado A usa muito simbolismo para defender o que gosta, o lado B, odiando o que defende o lado A, odiará até mesmo o simbolismo, que é somente uma ferramenta narrativa.

É neste ponto que chegamos. E para que a crônica não vire sermão, despeço-me!

Publicado por Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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