Eu tive um vizinho que era muito descolado, tocava em uma banda de rock, andava de skate, usava roupas radicais, saía e voltava à hora que queria. Eu, adolescente de interior, criado com pai e mãe caxias, sonhava em ser como o Bob — chamarei assim para preservar sua privacidade —, livre como o vento.
Certo dia, Bob sumiu. Foi morar em outras bandas. Eu cresci, me formei, arranjei trabalho, saí daquela vizinhança, casei, tive uma filha. E nessa vida nova, como de costume, fui certa vez com esposa e filha ainda bebê ao mercado, e lá estava o Bob: diferente, sem os dreads no cabelo, acima do peso e, se não estava fortemente medicado, acabara de usar algo muito forte, pois parecia estar em outro mundo, mas mesmo assim ele me reconheceu.
Veio falar comigo e, para minha surpresa, eu não o reconheci. O que ele falava não fazia sentido. Não sabia em que eu poderia acreditar de suas palavras. Em algum momento disse que precisava de roupas e perguntou se eu não tinha algumas sobrando. Tudo isso foi muito rápido. Logo estávamos nos despedindo. Senti extrema compaixão de Bob. Não queria de jeito nenhum estar em sua pele.
Bob não era livre como o vento. Era como a areia de uma ampulheta, preso, derramando a contento de quem brinca com o tempo: ele mesmo. Talvez ele nunca tenha sido livre. É possível que gostasse das músicas que ouvia por pressão do grupelho, que tocasse em uma banda só para impressionar adolescentes e suprir suas paixões mais primitivas. Se bebia ou usasse sei lá o quê, mesmo para “se libertar”, acabou escravizado, totalmente entregue, vulnerável, dependente.
Hoje, mais cedo minha filha pediu água de coco. Saí do claustro do escritório e fui comprar. Lá estava Bob, sentado a uma mesa, em frente à barraca de coco da feira. Parecia mesmo medicado, anestesiado. Trocamos olhares, apertei sua mão e me resumi a um “Oi, Bob! Tudo bem?”. Recebi um resumo ainda mais resumido: “Beleza!”. Mãos sem firmeza, voz ainda mais sem força. Não estava nada beleza. Comprei os cocos e saí.
O caminho de volta, claro, foi de reflexão. Logo a canção de Belchior veio à mente: “Ainda somos os mesmos e vivemos como os nossos pais”. Belchior inicia o parágrafo com um “Minha dor é perceber”, mas evoquei a sentença sem nenhuma dor, sem nenhum arrependimento. Vivo como os meus pais viveram, não como Bob viveu, e isso é libertador. O jovem que admirava o Bob jamais acreditaria em tal felicidade, se eu pudesse voltar ao tempo e contar tudo. Foi um longo caminho para alcançar a liberdade que hoje tenho. Estou satisfeito.
Espero que Bob encontre a liberdade um dia. E, quando penso nele, “na parede da memória, essa lembrança é o quadro que dói mais”.