Crônica, Texto

A admiração artística-filosófica em Palavrantiga e Povia

Todos têm um pouco de poeta e de filósofo — e de doido, diria minha mãe. Na cultura ocidental as relações entre poesia e filosofia já foram amplamente discutidas, desde Aristóteles e, claro, antes dele. Por questões semânticas, tomemos também por “poeta” o artista de modo geral, o criador. E por “poesia” entendamos a arte em geral, a criação artística.

É dado que a poesia seja mais antiga que a filosofia, sendo parida e nutrida a segunda pela primeira, ora relacionando-se, ora competindo saudavelmente e até em guerra mortal (vide Sócrates). O inevitável é que, unidas ou brigando, estão sempre lado a lado. Mesmo que Platão quisesse banir a poesia de sua cidade, utilizou-se dela lindamente para favorecer sua tese. Sidney e Shelley precisaram defender a poesia em suas épocas, pujantes em filosofia. Esperto mesmo foi Rafael Sanzio, que as pintou na mesma sala, até o teto, a Escola de Atenas e o Parnaso — juntamente com alegorias da teologia e da justiça, na Sala da Assinatura, Vaticano.

Celeumas cabeçudas à parte, detenhamo-nos, pois, à grande semelhança entre poesia e filosofia, matrizes de todas as artes e ciências: ambas partem da admiração, da surpresa, da contemplação amorosa. São demasiadas humanas, como estabelecemos, todos são meio poetas e filósofos — e doidos, não olvidem mamãe. O que diferencia os poetas e filósofos dos demais é a resposta à admiração. Artistas e filósofos reagem de modo diferente das massas quando admirados: uns escrevem livros, outros pintam ou esculpem, outros, ainda, moldam a própria vida e fazem discípulos. Suas obras são dotadas em menor ou maior grau de admiração, mas sempre a conterá em plano de fundo, que seja.

O maior terror para artistas e filósofos é um embotamento da vida, um enegrecer no olhar contemplador, uma surdez para a marcha musical do universo. O embotamento é a lepra dos contempladores amorosos.

Vejamos os versos de uma canção do músico italiano Giuseppe Povia, “Quando I Bambini Fanno Oh” — traduzida:

Quando as crianças fazem uau!
Que maravilha! Que maravilha!
Mas que bobo veja só, olha só!
Eu me envergonho um pouco
Já não sei mais fazer “uau!”

Na canção o eu lírico traz as crianças como esse contemplador amoroso, que sentem a admiração, as maravilhas, enquanto ele mesmo se envergonha de não maravilhar-se mais. Fazer “uau” é a admiração. Para as crianças tudo é motivo de “uau”, pois são novas em um mundo velho, cheio de espantos a serem desbravados.

O eu lírico compara as crianças a poetas que fantasiam — assim como fez Freud em “O poeta e o fantasiar” (1908). E segue:

E cada coisa nova é uma surpresa
Até quando chove
E as crianças fazem: Uau, olha que chuva!

A admiração é mesmo demasiada humana, independentemente da idade e de todo o resto. As palavras da canção ecoam em desfecho: “Quero voltar a fazer uau! Quero voltar a fazer uau!” Aqui temos o artista perante certo embotamento e, de modo surpreendente, admirado com sua falta de admiração, e disso fez arte. Filosófico, não? — e um pouco de doido.

Se os primeiros filósofos (e cientistas, por que não?) não respondessem à admiração perante a chuva, coisa tão vulgar em nosso dia a dia, não teríamos alcançado a compreensão do ciclo da água, acreditando ainda em algum mito sobre um deus da chuva ou coisa do tipo. Sim, mitos criados por poetas, mas sem ressentimento…

As admirações são inesgotáveis. O nome da música que evoco agora sugere bem essa ideia: “Tudo que eu vi não é tudo o que eu preciso aprender”, composta por Marcos Almeida, da banda Palavrantiga.

A premissa da música compartilha da sinceridade infantil e vulnerável das crianças: “Estou aqui, meu Senhor / Bem sincero serei”. Aqui o lirismo é de grandeza espiritual, o homem em busca do sublime conhecimento. O embotamento na caminhada espiritual esfria a relação com o divino, causando dor no eu lírico, que clama por mais sensibilidade para admirar:

Dá-me um coração
Que ainda tem sede de Ti
Dá-me um coração
Que ainda tem fome de Ti

Podemos ver na música um reconhecimento à dessensibilização perante a vida, a perdição da surpresa que dá sentido ao contemplador amoroso:

Eu preciso andar
Também me surpreender outra vez

Como sugere o título da obra, por mais que seja visto, não será o necessário para o contemplador que tem sede e fome, e quando o objeto de contemplação é Deus, nem se fala. O mundo está cheio de admiração e admiradores, sejam artistas, filósofos — doidos? — ou não artistas e filósofos, depende da resposta às admirações. Fato é que, a surdez para a marcha musical do universo é prenúncio da marcha fúnebre do espírito humano, criado para admirar:

“Pois, desde a criação do mundo, os atributos invisíveis de Deus — o seu eterno poder e a sua natureza divina — têm sido vistos claramente, sendo compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus, não o glorificaram como Deus nem lhe renderam graças. Pelo contrário, os seus pensamentos tornaram‑se fúteis, e o coração insensato deles se obscureceu. Embora eles afirmem ser sábios, tornaram‑se tolos”.

Romanos 1:20-22 NVI

Ouçamos a marcha ordenadora, traduzamo-la aos espíritos cansados, demasiados humanos. Eis o chamado para a “grande comissão”, aos artistas, filósofos — doidos? — ou não:

 Ide! Admirai-vos e respondei!

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Published by Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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