Fichamentos e Resenhas

A vida intelectual — A. D. Sertillanges

I – A vocação intelectual

I – O intelectual é um consagrado

Uma vocação não se satisfaz com leituras vagas nem com pequenos trabalhos dispersos. Requer penetração continuidade e esforço metódico, no intuito duma plenitude que responda ao apelo do Espírito e aos recursos que lhe aprouve comunicar–nos.

Este apelo não se deve conjecturar. Quem se aventura a um caminho, que não pode trilhar, com pé firme, conte de antemão com decepções.

Os atletas da inteligência, Como os atletas do desporto, têm de prever privações, longos treinos e tenacidade por vezes sobre–humana.

O ponto está em ser dócil a Deus e a si próprio, depois de ter escutado estas duas vozes.

S. Tomás, afirmando que o prazer qualifica as funções e pode servir para classificar os homens, deve naturalmente concluir que o prazer também pode trair as nossas vocações.

Amai a verdade e os seus frutos de vida, para bem vosso e dos outros; consagrai ao estudo e à sua utilização o principal do vosso tempo e do vosso coração.

Isto supõe que se abraça a vida intelectual com intenções desinteresseiras e não por ambição ou vã gloríola. Os guisos da publicidade só tentam os espíritos fúteis.

Sois um consagrado: tendes de querer o que a verdade quer; consenti, por causa dela, em vos mobilizardes, em vos fixardes nos seus domínios, em vos organizardes e, porque vos falta a experiência, em vos firmardes na experiência alheia.

O ascetismo especial e a virtude heróica do trabalhador intelectual deverão ser, para eles, o pão de cada dia.

Nota do leitor: Ascetismo: práticas que visam o desenvolvimento espiritual.

Não desanime.

Nota do leitor: A obra insiste em combater o sentimento de desânimo na pessoa quanto à vida intelectual.

O resto sempre se alcança. Livros, há–os em toda a parte; além disso, poucos bastam.

Quando S. Tomás de Aquino se dirigia a Paris e descobriu ao longo a cidade, disse ao irmão que o acompanhava: “Irmão, de bom grado trocaria tudo isto pelo comentário de S. João Crisóstomo sobre S. Mateus”.

Na opinião de muitos, as duas horas, que peço, bastam para talhar um destino intelectual. Aprende a administrar esse pouco tempo; mergulha todos os dias no manancial que, dessedentando, aumenta a sede.

Nota do leitor: Pouco tempo diário basta para a formação de um intelectual. Cerca de duas horas diárias.

Se Deus quiser, também tu encontrarás lugar, um dia, na assembleia dos espíritos nobres.

Nota do leitor: Amém!

II – O intelectual não é um isolado

O trabalhador cristão, em virtude da sua vocação intelectual de consagrado, não deve isolar– se. Seja qual for a sua situação, julguem–no abandonado ou retirado materialmente, não deve deixar–se tentar pelo individualismo, imagem deformada da personalidade crista. Se a solidão vivifica, o isolamento paraliza e esteriliza.

Nota do leitor: Solidão X Isolamento

O isolamento é inumano; porque trabalhar humanamente é trabalhar com o sentimento do homem, das suas necessidades, das suas grandezas, da solidariedade que nos liga numa vida estreitamente comum.

Toda a verdade é prática; a mais abstracta na aparência, a mais elevada é também a prática. Toda a verdade é vida, orientação, caminho em ordem alcançar o fim humano. Por isso Jesus Cristo reuniu numa só afirmação: Eu som o Caminho, a Verdade e a Vida.

III – O intelectual pertence ao seu tempo

Nem todos os tempos valem o mesmo, mas todos os tempos são tempos cristãos, e há um que para nós e praticamente os ultrapassa a todos: o nosso.

Utilizemos, como vivos, o valor dos mortos.

Deus não envelhece.

Nota do leitor: E é por isso que, segundo Chesterton, Deus não fica entediado com a eternidade, pois tem a energia de uma criança.

II – As virtudes de um intelectual cristão

I – As virtudes comuns

O intelecto não passa de instrumento, e o seu manejo é que lhe determina os efeitos. Para bem reger a inteligência, requerem–se evidentemente outras qualidades além da inteligência. Um espírito recto declara instintivamente que a superioridade em qualquer género inclui uma dose de superioridade espiritual. Para julgar com acerto, é preciso ser grande.

Ora, se o carácter fraqueja, é natural que venha a ressentir–se o senso das grandes verdades. O espírito que, por falta de inspecção, não volta a encontrar o seu nível, despenha–se em perigosos declives, e um pequeno erro ao princípio acaba por ser grande.

Nota do leitor: Um caráter fraco é ressentido com ralação à grandeza de espírito e das virtudes.

“Dize–me o que amas, dir–te–ei o que és”. O amor, em nós, é o começo de tudo,

[…] o génio, que no trabalho é já virtuoso, para ser santo só precisaria de ser mais plenamente o que é.

A virtude é saúde da alma.

II – A visão espiritual não é menos exigente

Pensamos “com toda a alma”, declarava Platão. Nós vamos muito mais longe e dizemos: pensamos com todo o ser. O conhecimento interessa tudo em nós, desde a ideia vital até à composição química da mais pequenina célula.

Nota do leitor: Cada parte do homem biológico e do Ser é repleta de informações extremamente complexas.

Ora as paixões e os vícios distraem a atenção,

Não pensais na preguiça, sepulcro dos melhores dons?

Não nos aproximamos da verdade pelo que em nós há de individual, mas participando no universal.

Subi a grande pirâmide pelos degraus que representam tão exactamente a ascensão da verdade: se subirdes pelo ângulo norte, não chegareis ao cume sem vos aproximardes do ângulo sul. Manter–vos a distância, é ficar nos níveis baixos; afastar–vos, é ir de través e tornar a descer. Assim o génio da verdade tende para o bem: se dele se afasta, é à custa da sua ascensão para os cimos.

III – A virtude própria do intellectual

Eis–nos certos de que a virtude, em geral, é necessária à ciência e que, quanto maior rectidão moral nela empregarmos, tanto mais fecundo será o estudo.

Nota do leitor: Moral e virtudes tornam fecundo o estudo.

Destaque (rosa) – Posição 296

A virtude própria do homem de estudo é, evidentemente, a estudiosidade.

Nota do leitor: A virtude do homem de estudos: estudiosidade.

No reino da estudiosidade, Opõem–se dois defeitos: a negligência e a vã curiosidade.

Quem visa mais alto do que pode e se expõe a errar, quem deita a perder faculdades reais a fim de adquirir faculdades ilusórias, é igualmente curioso no sentido antigo. Dois dos dezasseis conselhos de S. Tomás em matéria de estudo dirigem–se a esses tais: “Altiora te ne quaesieres, não busques mais do que podes”, “Volo ut per riuulos, non statim, in mare eligas introire, resolve–te a entrar no mar pelos regatos e não directamente”. Preciosos conselhos, tão úteis para a ciência como para a virtude, pelo equilíbrio que comunicam ao homem. Não sobrecarregueis o solo, nem eleveis o edifício mais alto do que os alicerces o permitem, ou antes de os alicerces estarem consolidados: de contrário tudo desabaria. Quem sois? Qual a vossa situação? Quais os vossos fundamentos intelectuais? Eis o que deve determinar as vossas empresas no domínio da ciência. Se quiserdes colher os frutos, plantai a árvore: eis, em resumo, o conteúdo do conselho de S. Tomás.

Não devemos estimar–nos acima do que valemos, mas sim julgar–nos.

Perde–se quem quer subir como quem quer descer. Caminhai sempre para a frente em harmonia com o que sois, levando a Deus por guia.

[…] acima de tudo, salientaremos que o estudo deve ceder o lugar ao culto, à oração, à meditação directa das coisas de Deus.

Nota do leitor: Antes as coisas espirituais.

[…] deve preferir a frequentação directa; de contrário, faltará a um dever capital e além disso os vestígios da imagem de Deus nas coisas criadas só servirão de afastar para longe daquele a quem atestam.

Preferir as coisas diretas de Deus que seus reflexos.

IV – O espírito de oração

A inteligência só cumpre plenamente a sua missão exercendo uma função religiosa, isto é, rendendo culto à suprema verdade através da verdade reduzida e dispersa.

Nota do leitor: O intelectual cristão deve contribuir para além do meio religioso.

V – A disciplina do corpo

O fenómeno intelectual produz–se no meio de fenómenos fisiológicos, em continuidade com eles e debaixo da sua dependência. Ninguém pensa, mesmo que só utilize uma ideia adquirida, sem evocar uma série de imagens, de emoções, de sensações, que são os adubos com que se fermenta a ideia.

Nota do leitor: Corpo são, mente sã.

Esta doutrina, que o Santo Doutor desenvolve a cada passo, tão essencial e providencialmente moderna, deve gerar a convicção de que para pensar, sobretudo para pensar com ardor e sabedoria durante uma vida inteira, é indispensável sujeitar ao pensamento não só a alma e as suas diversas potências, mas também o corpo e todas as suas funções orgânicas? Tudo, num intelectual, deve ser intelectual.

Primeiramente, não vos envergonheis de cuidar da saúde. Génios houve de saúde lamentável, e se Deus permite que assim suceda convosco, não discutamos. Mas se a culpa é vossa, então isso seria tentar a Deus e caso de grande culpabilidade.

Nota do leitor: É preciso cuidar da saúde e do corpo que Deus nos deu.

Em igualdade de dons, a doença é grave inferioridade: diminui o rendimento; entrava a liberdade no momento das suas delicadas funções; desvia a atenção; pode falsear o juízo pelos efeitos de imaginação e de emotividade que o sofrimento provoca. Uma enfermidade de estômago muda o carácter do homem e o carácter muda os pensamentos. Se Leopardi não tivesse sido o aborto que foi, quase decerto o não contaríamos no número dos pessimistas.

A boa higiene é, para vós, uma virtude por assim dizer intelectual. Os nossos modernos, por vezes tão pobres de filosofia, são ricos de higiene; pois bem, não a desdenheis, porque ela enriquecerá a vossa filosofia. Tanto quanto possível, vivei ao ar livre. A atenção, nervo da ciência, está em estreita correlação com a respiração e, para a saúde em geral, a abundância de oxigénio é condição primeira.

Nota do leitor: Ser higiênico e tomar ar puro.

Consagrai todos os dias algum tempo a exercícios corporais.

Reservai–vos todos os anos, e no decurso do ano, férias para descansar a sério. Não quero dizer que vos abstenhais de todo o trabalho, pois isso afrouxaria faculdades naturalmente activas, mas sim que predomine, nesses períodos de tempo, o repouso, o ar livre e o exercício em plena natureza.

Cuidai mais ainda do sono: não seja demasiado nem escasso.

O amigo do prazer é inimigo do seu corpo e depressa se torna inimigo da sua alma.

III – A organização da vida

I – Simplificar

[…] precisais também de dispor a vida, quanto ao ambiente, obrigações, vizinhanças, cenário.

Religiosa ou laica, científica, artística, literária, a contemplação não se compagina com as comodidades demasiado onerosas, nem com as complicações.

A vida mundana é fatal para a ciência. A ideia e a ostentação, a ideia e a dissipação são inimigos mortais.

As divisões ocasionadas pela incompreensão da alma irmã são fatais à produção; introduzem no espírito uma inquietação que o corrói; não lhe fica ardor nem alegria, e como é que a ave voaria sem asas, a ave e a alma sem o seu canto? Por conseguinte, a guarda do lar não deve ser o génio mau, mas sim a musa do mesmo lar.

Nota do leitor: Discussões com a mulher (ou o marido) atrapalham na produção intelectual.

Sem precisar de ser intelectual, menos ainda mulher de letras, pode produzir muito ajudando o marido a produzir, obrigando–o a velar sobre si, a dar o máximo de trabalho, levantando–o nas horas inevitáveis das quedas, animando–o nos dissabores sem lhos acentuar com demasiada insistência, acalmando–lhe as penas, sendo a sua recompense após o trabalho.

Nota do leitor: A mulher (ou o marido) do intelectual deve ser uma auxiliadora.

Quanto às criança, esta suave complicação deve servir para renovar o ânimo mais do que para o privar dos seus recursos. Tomam muito de vós, esses pequeninos, e para que serviriam eles, se vos não moessem a paciência de tempos a tempos?

Nota do leitor: Crianças dão trabalho e inspiram ao mesmo tempo.

II – Guardar a solidão

 “Quero que sejas lento em falar e lento em ir à sala de visitas”. “Nunca te intrometas na vida alheia”. “Mostra–te amável para com todos”, mas “não sejais muito familiar com ninguém, porque a demasiada familiaridade gera o desprezo e dá matéria a muitas distracções”. “Não te ocupes das palavras nem das acções seculares”. “Evita acima de tudo as voltas inúteis”. “Ama a cela, se quiseres ser introduzido na adega”.

Portanto, sede lentos em falar e em ir aonde se fala, porque as muitas palavras obrigam o espírito a escoar–se como água;

[…] quem quiser saborear as alegrias criadoras, não se apresse a pronunciar o Fiat lux […]

Os mais belos cantos da natureza ressoam de noite. O rouxinol, o sapo de voz cristalina, o grilo, cantam na sombra. O galo proclama o dia, não espera por ele. Todos os anunciadores, todos os poetas, e também os investigadores e pescadores de verdades esparsas têm de mergulhar na grande vacuidade que é plenitude.

Platão consumia “mais azeite na lâmpada do que vinho na taça”.

A solidão permite–vos o contacto convosco, contacto necessário, se quiserdes realizar–vos e não ser o papagaio de fórmulas aprendidas, mas sim o profeta do Deus interior que fala a cada qual uma linguagem única.

Na multidão ignoramo–nos, inteiramente atravancados por um eu estranho, que é multidão. “Como te chamas?– Legião”: eis a resposta do espírito disperso e dissipado na vida exterior.

Nota do leitor: Multidões dissipam o espírito do intelectual.

III – Cooperar com os seus iguais

Nem por isso sereis o isolado que condenamos: não estareis longe dos vossos irmãos pelo facto de ter abandonado o ruído que fazem e que vos separa deles espiritualmente, impedindo assim a verdadeira fraternidade.

Aquele que se crê unido a Deus, sem estar unido a seus irmãos, é mentiroso, afirma o apóstolo; não passa de falso místico e, intelectualmente, de falso pensador; mas o que está unido aos homens e à natureza sem estar unido com Deus no seu íntimo, sem ser cliente do silêncio e da solidão, é apenas vassalo dum reino de morte.

A frequentação primeira do intelectual, a que o qualificará, sem prejuízo das suas necessidades e deveres de homem, é a frequentação dos seus iguais. Digo frequentação, prefiriria dizer cooperação, porque, frequentar sem cooperar não é fazer obra intelectual.

Nota do leitor: Da amizade com outros estudiosos.

Seria esse o momento de conceber e de fundar a oficina intelectual, associação de trabalhadores, por igual entusiastas e aplicados, livremente reunidos, vivendo na simplicidade, na igualdade, sem que nenhum deles pretenda impor–se, embora possuindo reconhecida superioridade de que o grupo se possa aproveitar. Longe de competições e de orgulhos, buscando apenas a verdade, os amigos assim reunidos seriam, se assim me atrevo a exprimir, multiplicados uns pelos outros, e a alma comum provaria uma riqueza que em nenhuma parte parece ter explicação suficiente.

Nota do leitor: Intelectuais vivendo e trabalhando juntos, afim de crescerem juntos.

A amizade é maiêutica que extrai de nós os mais ricos e íntimos recursos; desdobra as asas dos sonhos e dos obscuros pensamentos; inspecciona os juízos, experimenta as ideias novas, entretém o ardor e inflama o entusiasmo.

Nota do leitor: A amizade é maiêutica

Se puderes, tentai agregar–vos a uma fraternidade deste género; se preciso for, constituí–a. Em todo o caso, mesmo no isolamento maternal, buscai em espírito a sociedade dos amigos da verdade.

IV – Cultivar as relações necessárias

A demasiada solidão empobrece. Escrevia recentemente alguém: “A dificuldade dos romancistas hodiernos afigura–se–me esta: se não frequentam o mundo, os seus livros são ilisíveis, e se o frequentam, falta–lhes tempo para escrever”.

O homem nimiamente isolado torna–se tímido, abstracto, um pouco bizarro; cambaleia no real como o marinheiro quando põe o pé em terra; falta–lhe o senso do destino; dá a impressão de vos olhar como se fosseis uma “proposição” a inserir num silogismo ou um caso a notar um calepino.

A sociedade é livro para ler, embora livro banal. A solidão é obra–prima;

Deveríamos lidar com o mundo externo como os anjos, que tocam sem ser tocados, que dão sem perderem nada do que possuem, porque pertencem a outro mundo.

O silêncio é o conteúdo secreto das palavras importantes. O valor duma alma mede–se pela riqueza do que ela não diz.

V – Conservar a dose necessária de acção

As ideias estão nos factos, não vivem em si mesmas, como supôs Platão:

A ideia, em nós, privada dos seus elementos empíricos, dos fantasmas, não passa de concerto vazio, que nem sequer é percebido.

VI – Manter o silêncio interior

Costuma–se dizer que a solidão é mãe dos obras. Mas exacto seria dizer: o estado de solidão.

[…] podemos conceber uma vida intelectual fundada num trabalho de duas horas por dia, o que não quer dizer que, salvas essas duas horas, possamos em seguida proceder como se elas não existissem. Essas duas horas são dedicadas à concentração; independentemente delas, requere–se a consagração de toda a vida.

Nota do leitor: Duas horas por dia é o suficiente para uma vida intelectual.

Há uma falsa solidão, como há uma falsa paz.

IV – O tempo de trabalho

I – O trabalho permanente

É preciso orar sempre equivale a afirmar: é preciso desejar sempre as coisas eternas, as coisas do tempo que as servem, o pão quotidiano de toda a natureza e de toda a oportunidade, a vida em todas as suas amplidões, terrestres e celestes.

 “A sabedoria clama nas ruas, diz a Bíblia; eleva a voz nas Praças Públicas; prega à entrada dos lugares ruidosos, às portas da cidade: até quando, ó ignorantes, amareis a ignorância?… Convertei–vos… Que sobre vós espalharei o meu espírito… Estendo a mão e ninguém me dá atenção” (Prov. I, 10–24).

Tudo contém tesouros, porque tudo está em tudo, e algumas leis da vida ou da natureza governa o mais.

Qualquer facto pode gerar um sublime pensamento. Em toda a contemplação, mesmo na duma mosca ou duma nuvem que passa, há oportunidade de reflexões sem–fim.

Nota do leitor: Faz bem isso a poesia.

Aprendei a olhar; confrontai o que se vos oferece com as ideias que vos são familiares ou secretas. Numa cidade não vejais somente casas, mas vida humana e história.

Nas mais simples conversas circulam verdades sem conta. A mais pequena palavra escutada com atenção pode ser oráculo. Há ocasiões em que um camponês mostra maior sabedoria que um filósofo.

Nota do leitor: A sabedoria pode ser encontrada nas simples coisas.

Em cada homem está o homem todo […]

Ora, o que o romancista busca pode servir a todos, porque todos precisam desta experiência intensa. O pensador só é verdadeiramente pensador, se encontrar, no mais pequeno impulso de fora, a ocasião dum entusiasmo ardente.

É pena que os homens de escol sejam tão pouco úteis aos que os rodeiam!

A palavra de um grande homem, como a de Deus, é, por vezes, criadora. Mas os grandes homens só são grandes após a morte. Em vida, quase ninguém repara neles.

O espírito deve manter–se em perpétua disposição de reflectir, como em perpétua disposição de ver, de ouvir, de apontar à presa que passa, como bom caçador.

II – O trabalho nocturno

Quer que trabalhemos de noite. Conselho este que se apoia na psicologia e na experiência.

Durante o sono, completa–se e encadeia–se o trabalho cerebral começado e a ideia encetada que um incidente interno ou externo impedira de desabrochar inteiramente: não percais esta ocasião de lucro; recolhei essa claridade que vos pode servir de ajuda, antes que ela torne a mergulhar na noite mental.

A noite, esplêndida colaboradora, deu–vos sem esforço da vossa parte, um dia de vinte e quatro horas completas, talvez semanas, as exigidas para engastar, com dispêndio de esforço voluntário, a jóia preciosa com que ela vos brindou.

Antes de adormecer, retornai a questão que vos preocupa, a ideia lenta ou renitente em desdobrar as suas virtualidades, e confiai–a a Deus e à alma.

[…] eu durmo, a natureza vela, Deus vela e, amanhã, recolherei um pouco do trabalho efectuado por ambos.

Do mesmo modo que o trabalho suave e regular harmoniza o dia, assim o trabalho inconsciente da noite pode derramar nele a paz e afastar as divagações, as insanidades esgotadoras ou pecadoras, os pesadelos.

Nota do leitor: Até o sono do intelectual deve servir-lhe.

Não, é preciso dormir; é indispensável o sono reparador. Dizemos apenas que a noite, como noite, pode trabalhar por si, que é “boa conselheira”; que o sono, como sono, é artista útil; que o repouso, como repouso, é também força. Aproveitemos estes auxílios, consoante a natureza deles e não violentando–os. O repouso não é morte; é vida, e toda a vida produz frutos. Podendo colhê–los, não deixeis aos pássaros nocturnos o fruto do sono.

III – A madrugada e os serões

A meditação é tão essencial ao pensador, que não vale a pena encomiá–la. Preconizamos o espírito de oração: onde poderá ele nutrir–se melhor do que nas contemplações matinais, quando o espírito repousado, ainda não preso pelas preocupações do dia, levado, erguido nas asas da oração, sobe facilmente aos mananciais da verdade que o estudo dificilmente capta?

Conheço industriais que descansam, lendo Pascal, Montaigne, Ronsard.

IV – Os instantes de plenitude.

Quando se dispõe de poucas horas e estas se podem situar livremente, parece que a manhã deve ter a preferência.

[…] fugi das conversas vãs, das visitas inúteis; limitai a correspondência ao estrito necessário; lede os jornais com moderação.

Chamai então a inspiração. A deusa nem sempre acudirá, mas sempre se deixa comover pelos esforços sinceros.

[…] bastam duas horas por dia para levar a cabo uma obra.

Se tendes obrigações, dai–lhes, em tempo normal, o que lhes compete; se tendes amigos, combinai encontros oportunos; se a gente importuna vos solicita, fechai–lhes a porta com bons modos.

Há presenças que duplicam a quietação, em vez de a dissiparem. Tende junto de vós um trabalhador activo, um amigo absorvido nalgum pensamento ou ocupação harmoniosa, uma alma de escol que compreenda a vossa obra que se una com ela, e apoie o vosso esforço com silenciosa ternura e ardor por vós comunicado: isso não é distracção, é ajuda.

Nota do leitor: Ter ajuda que compreenda a vida intelectual.

V – O campo de trabalho

I – A ciência comparada

Embora cultivemos uma especialidade, não é prudente, nem fecundo, confinar–nos nela exclusivamente.

Nenhuma ciência se basta a si mesma; nenhuma disciplina, encarada em si só, é luz suficiente para iluminar os seus caminhos. Isolada, mirra–se, emagrece, estiola–se e, na primeira ocasião, extravia–se. A cultura parcial é sempre indigente e precária. O espírito ressente–se disso continuamente; a falta de liberdades de movimentos e de segurança de visão paralisa os gestos.

O saber não é torre nem poço, é habitação humana. Um especialista, se não for homem, é manga de alpaca,

Acima de tudo será homem, pois pertence, por vocação, ao género humano;

O cultivo exclusivo de qualquer ciência apresenta igualmente perigos que ninguém de bom senso desconhece. O estudo isolado das matemáticas falseia o juízo, habituando–o a um rigor que nenhuma outra ciência, e menos ainda a vida real comporta. A complexidade da física e da química causa fastio e apouca o espírito. A fisiologia conduz facilmente ao materialismo, a astronomia corre o perigo de habituar à divagação, a geologia converte–vos em galgos que tudo farejam, a literatura torna–vos balofos, a filosofia incha, a teologia expõe–vos ao falso sublime e ao orgulho doutoral. Precisais de passar de um espírito a outro, a fim de os corrigir um pelo outro; precisais de variar as culturas para não cansar o solo.

Os grandes homens foram sempre mais ou menos universais;

Escolhei acertadamente os conselheiros. Um só entre mil para o conjunto, outros para cada parte, se preciso for.

Em cada coisa, ide direitos ao essencial, não vos deixando enredar nas minúcias: não é por estas que se empunham as ciências; é muitas vezes pelo pormenor mas pelo pormenor característico, isto é, pelo fundo.

[…] o conjunto das ciências, se não sustenta sem a rainha das ciências – a filosofia –, nem o conjunto dos conhecimentos humanos sem a sabedoria derivada da ciência divina – a teologia.

As ciências, sem a filosofia, desclassificam–se e desorientam–se. As ciências e a filosofia, sem a teologia, desclassificam–se mais ainda, visto repudiarem uma coroa celeste;

Hoje que a filosofia esmoreceu, as ciências rebaixam–se e dispersam–se; hoje que se ignora a teologia, a filosofia é estéril, não conclui coisa alguma, faz crítica e faz história sem bússola; é sectária e muitas vezes destruidora, nunca tranquiliza nem ilumina; não ensina.

Nota do leitor: A filosofia de hoje.

Os sábios cristãos, desde o princípio até ao fim do século XVII, foram todos teólogos, e os sábios, cristãos ou não, até ao século XIX, foram todos filósofos. Depois, o saber baixou; alastrou em superfície e perdeu em altura, e portanto também em profundidade,

Não custa penetrar no campo da teologia, nem o seu estudo exige muito tempo, a não ser, é claro, que se tome como objecto de especialidade. Dedicai–lhe quatro horas por semana, durante cinco ou seis anos; é o suficiente; depois só tereis de conservar o aprendido.

Nota do leitor: Estudar teologia: 4 horas por semana.

II – O tomismo, quadro ideal do saber

O génio não tem data. Quando se trata de valores eternos, a sabedoria esta em se dirigir a quem sabe mergulhar, em qualquer data temporal, no âmago da eternidade.

[…] tomismo é falível e que, no campo das teorias transitórias, ele participou dos erros dos tempos;

III – A especialidade

[…] não suceda que nos acoimem de promover ciência enciclopédica.

[…] o espírito enciclopédico é inimigo da ciência.

É muito importante trabalhar com alegria, portanto com facilidade relativa, portanto com o sentido das aptidões. É preciso, avançando primeiramente em diversas vias, descobrir–se a si próprio, e, uma vez ciente da sua vocação especial fixar–se nela.

Todos os abismos se assemelham e todos os fundamentos comunicam entre si.

Por querer ser legião, ter–nos–emos esquecido de ser alguém; visando a ser gigantes, diminuímo–nos como homens.

Nota do leitor: Indivíduo X Coletivo

Por outras palavras, é preciso compreender tudo, mas com o intuito de chegar a fazer alguma coisa.

IV – Os sacrifícios necessários

Custa muito dizer: tomando por um caminho, tenho que abandonar mil outros. Tudo é interessante; tudo atrai e seduz o espírito generoso; mas há a morte; há as necessidades do espírito e das coisas;

Somos afinal bem pouca coisa, mas fazemos parte dum todo e disso nos honramos.

Não julgueis, portanto, que tudo vos é possível.

O meio–sábio não é só o que sabe a metade das coisas, é o que as sabe só a meias. Sabei o que decidistes saber: não percais de vista o resto. O que não for da vossa vocação, deixai–o a Deus, que disso terá cuidado. Não deserteis de vós, por vos terdes querido substituir a todos.

VI O espírito de trabalho

I – O ardor da investigação

A alma não envelhece, cresce sempre; em face da verdade, é eterna criança;

O inimigo capital do saber é a indolência, esta preguiça original que evita o esforço

 “Tu, oh Deus, vendes os bens aos homens pelo preço do esforço”, escreve Leonardo de Vinci nas suas notas.

II – A concentração

Empreendei cada tarefa como se fosse a única. Era esse o segredo de Napoleão; é o de todos os grandes homens activos. Os próprios génios só se engrandeceram pela concentração das energias sobre o ponto que tinham em vista.

III – A submissão à verdade

A verdade só se entrega a quem primeiro se despoja e se decide a contentar–se exclusivamente com ela.

Intelectualmente, o orgulho é o pai das aberrações e das criações factícias; a humildade é o olhar que lê no livro da vida e no livro do universo.

Nota do leitor: Orgulho X Humildade

[…] amar a verdade com tanto ardor que nela vos concentreis e vos transporteis assim para o universal, para o que é, para o seio das verdades permanentes, eis a atitude da contemplação e da produção fecunda.

 “Não repares donde vêm os ensinamentos, mas confiai à memória tudo o que se disser de bom”.

[…] e se não é oportuno acreditar em todos, também o não é negar crédito a quem quer que seja, desde que apresente os seus títulos.

Ora, na realidade, a inspiração está em toda a parte; o Espírito sopra nos vales como nos cumes. Na mais pobre inteligência existe um reflexo da Sabedoria infinita, e a humildade sincera lá o encontra.

IV – Alargamentos

A verdade é una; tudo depende da Verdade suprema; entre um objecto particular e Deus interpõem–se as leis do mundo, cuja amplidão vai crescendo desde a norma aplicada a esse objecto até ao Axioma eterno. Mas o espírito do homem também é uno e não pode satisfazer– se com a mentira das especialidades consideradas como divisão da verdade e da beleza em fracções esparsas.

O artista, a propósito do mais insignificante pormenor, deve pôr–se em estado de devaneio universal; o escritor, o orador, em estado de pensamento e de emoção universais.

Nota do leitor: Os artistas devem ter um espírito universal.

Fugi dos espíritos que não saem da escolaridade e são escravos do trabalho em vez de o propulsarem em plena luz.

Idiotas ou eternas crianças: eis o nome que merecem esses pretensos trabalhadores que, em qualquer região elevada, diante dum largo Horizonte, se encontram fora do seu ambiente e de bom grado reduziriam os outros à categoria de alunos de instrução primaria.

Os grandes homens sofrem esta secura dos pensamentos. Possuem visão larga, mas os seus resultados afiguram–se–lhes pequenos. Por isso é preciso lê–los, com espírito não literal, nem livresco, mas com espírito amplo. A letra mata: oxalá a leitura e o estudo sejam espírito e vida.

Nota do leitor: Como ler os grandes

V – O senso do mistério.

O senso do mistério deve permanecer, mesmo depois do nosso esforço máximo e depois que a verdade parece sorrir–nos.

Nota do leitor: Manter o mistério das coisas

[…] “se compreendes, podes estar certo que não é isso”. Mas o espírito limitado crê possuir o cosmos e a sua fortuna; com um balde de água na mão, clama: ora vede, captei o mar e os astros.

Nota do leitor: Um sábio não se apressa em suas certezas.

VII A preparação do trabalho

A A leitura

I – Ler pouco

Ora, a leitura é o meio universal para aprender, e é a preparação próxima ou remota para toda a produção.

Primeira regra: lede pouco.

Proscrevemos, sim, a paixão de ler, a ânsia, a intoxicação por excesso de nutrição espiritual, a preguiça disfarçada que prefere ao esforço a frequentação fácil. A “paixão” da leitura, de que tantos se prezam como de preciosa qualidade intelectual, é tara, é paixão em tudo semelhante às demais paixões que absorvem e perturbam a alma, retalhando–a de correntes confusas que lhe esgotam as energias. Leia–se com inteligência, não com paixão.

Nota do leitor: A paixão excessiva pela leitura é maléfica como todas as outras paixões. É preguiça disfarçada.

A leitura desordenada não alimenta, entorpece o espírito, torna–o incapaz de reflexão e concentração e, por conseguinte, de produção;

Ide antes dar um passeio, ler no livro imenso da natureza, respirar o ar fresco, distrair–vos.

Convém saber o que os jornais contêm; mas é tão reduzido o conteúdo!

Em todo o caso, há horas mais adaptadas para a corrida às notícias do que a hora do trabalho. O trabalhador consciencioso deveria contentar–se com a crónica semanal ou bimensal duma Revista, e recorrer aos jornais só quando lhe apontem algum artigo notável ou acontecimento grave.

lede pouco, para não devorar o silêncio.

Nota do leitor: É preciso ler de modo ordenado e com pausas para reflexão e produção.

II – Escolher

Deus sugere os bons pensamentos para nos salvar; o demónio acorda os maus pensamentos em nós latentes”.21 Portanto, é urgente seleccionar: seleccionar os livros e seleccionar nos livros.

Ler só obras de primeira mão, onde brilham as ideias mestras. Ora estas são pouco numerosas. Os livros repetem–se, diluem–se, ou então contradizem–se, o que é outra maneira de se repetirem.

(M.elle Bertin) quem diz: “só é novo aquilo que se esqueceu”.

[…] quereis ser do vosso tempo; não deveis ser um “tipo arcaico”. Contudo, não tenhais a superstição da novidade;

Nota do leitor: O intelectual não pode estar preso ao passado e nem achar o presente superior.

Nem tudo é igual. Nem por isso haveis de assumir atitude de juiz; sede antes, para com o autor, um irmão, na verdade, amigo, e amigo inferior, visto que, pelo menos debaixo de certos aspectos, o tomais por guia. Sendo o livro um irmão mais velho, é mister honrá–lo, abri–lo sem orgulho, escutá–lo sem prevenção, suportar–lhe os defeitos, buscar o grão da palha. Mas sois homem livre; permaneceis responsável: reservai– vos o bastante para guardar a alma e, se necessário for, para a defender.

Nota do leitor: Tratar uma obra sem juízo, como um irmão mais velho, suportar os erros…

O homem inteligente encontra em toda a parte inteligência, o louco projecta sobre todas as paredes a sombra da sua fronte estreita e inerte. Escolhei o melhor que puderdes; mas procurai que tudo seja bom, largo, aberto ao bem, prudente e progressivo.

III – Quatro espécies de leitura

Há leituras de fundo, leituras de ocasião, leituras de estímulo ou de edificação, leituras de repouso.

Nota do leitor: Os quatro tipos de leitura.

Comecemos por escolher os guias em quem confiar. A escolha dum pai intelectual é negócio muito sério.

Três ou quatro autores estudados a fundo para a cultura geral, três ou quatro para a especialidade e outros tantos para cada problema que surja,

Ter assim, nos momentos de depressão intelectual ou espiritual, autores favoritos, páginas reconfortantes, tê–las à mão, prestes para inocularem no espírito a boa seiva, é recurso incomparável.

Lede o que agrada, o que não entusiasma demasiado, o que não prejudica e, já que sois consagrado, mesmo quando vos distraís, tende a inteligência de ler, em igualdade de proveito e de repouso, o que for útil de outra maneira e ajudar a completar–vos, a ornar o espírito, a ser homem.

IV – O trato com o génio

O convívio com os génios é uma das graças de predilecção que Deus concede aos pensadores modestos; deveríamos preparar–nos para ela pela oração, como a Escritura recomenda,

“Após os génios vêm logo aqueles que lhe reconhecem o valor”,

A ciência consiste em ver dentro; o génio vê dentro; frequenta o íntimo dos seres e, graças a ele, fala–nos o mesmo ser e não os nossos ecos fracos e duvidosos. O génio simplifica. A maior parte das grandes invenções resultam de concentrações súbitas e fulgurantes.

Não é talvez muito exacto afirmar que os grandes homens reflectem apenas o seu século, mas é certo que reflectem a humanidade, e todos os membros desta humanidade têm nisso parte de glória.

Até os erros dos homens superiores são susceptíveis de contribuir para o benefício do convívio com eles. Precisamos de nos defender contra eles; a sua força por vezes transvia–se; quase todos manifestam sombras, como as máscaras apresentam saliências; ou o exagero de opiniões de qualquer outra espécie de arrebatamento os aparta do caminho da rectidão. No entanto, a despeito de possíveis aberrações, todos eles conseguem desvendar a um espírito avisado os eternos fundamentos da ciência e os segredos da vida.

O que é verdade individualmente, é verdade colectivamente. Devemos aprender a bem pensar sobretudo no trato com os sábios; mas a própria loucura comporta um ensinamento; quem escapa ao seu contágio, extrai dela uma força. “Quem tropeça sem cair, dá um passo avante”.

V – Conciliar em vez de opor

Para tirar proveito das leituras é indispensável começar por conciliar os seus autores e não os opor. O espírito critico tem suas aplicações; teremos que discutir opiniões e classificar homens; utilizemos então o método por contraste, sem o forçar.

O que então interessa, não são os pensamentos, mas as verdades, não são os homens, mas a obra por eles realizada e o que dela fica.

Quem, no convívio dos autores, quiser adquirir, não aptidões de combate, mas verdade e penetração, deve dar mostras de espírito de acomodação e de diligente recolha, exactamente como a abelha. O mel faz–se com muitas flores.

A quem souber utilizá–los, os homens superiores ensinam a comungar nas mesmas verdades.

VI – Assimilar e viver

Embora o leitor deva mostrar certa passividade que não tolha a acção da verdade em seu espírito, precisa, no entanto, de reagir sobre o que lê para o fazer seu.

Condenámos o eterno ledor, que pouco a pouco chega a ler maquinalmente, a um automatismo que já não é trabalho. Mas nem só os que muito lêem correm perigo de cair neste defeito. Muitos lêem do mesmo modo que as senhoras fazem malha. O espírito desses ledores, tomado de insolência, assiste inerte ao desfile das ideias

Quem não assimila o que aprende em frequentações dóceis, embora passe a vida a aprender, nunca chegara a instruir–se.

 “A obediência é a base do aperfeiçoamento”, diz Augusto Comte, não é o aperfeiçoamento.

Ninguém pode instruir–nos sem nós. A leitura propõe–nos verdade: temos de a fazer nossa.

Não é com os olhos nem com os ouvidos que se ouve uma palavra sublime, mas sim com a alma erguida ao nível do que lhe é revelado, com a inteligência iluminada pela mesma luz. A fonte do saber não está nos livros, está na realidade e no pensamento. Os livros são postes indicadores; o caminho é mais antigo, e ninguém trilha, por nós, o caminho da verdade.

O principal benefício da leitura, pelo menos da leitura das grandes obras, não é a aquisição de verdades esparsas, mas o acréscimo de sabedoria.

É abuso imperdoável convizinhar com génios e não extrair deles senão fórmulas! E é tão fácil reconhecer isto mesmo, quando os queremos utilizar, escrevendo!

Em face dos génios somos apenas crianças, mas crianças que herdam. O que eles nos legam pertence–nos, visto pertencer à eternidade; foi da eternidade que eles receberam. Enquanto falam, contemplemos o que existia ante deles, o que está acima deles, o que Deus prepara para todos.

Por pequeno que eu seja, sei que Deus não cria em vão nenhum espírito, como nem qualquer outra coisa da natureza. Libertando–me, obedeço ao meu Mestre. Vivo, não sou um reflexo, e quero uma vida fecunda. O que não gera não é: oxalá a leitura me permita gerar pensamento, à semelhança, não do meu primeiro inspirador, mas de mim próprio!

Uma obra é berço, e não túmulo.

Nota do leitor: Uma obra não tem em si nada acabado, mas nascido. Nenhum assunto se encerra em um livro, mas começa.

Nunca os autênticos génios quiseram amarrar–nos, mas sim libertar–nos.

B A organização da memória

I – Que se deve reter?

[…] a memória ampla e tenaz é recurso precioso.

Prevenimos o intelectual contra o abuso das leituras;

Todos os mestres são unânimes em afirmar que sobrecarregar a memória prejudica o pensamento e a atenção.

[…] o peso morto oprime o vivo, o alimento excessivo envenena.

Nicole sugere ao cristão que “aprenda de cor alguns salmos e sentenças da Sagrada Escritura, a fim de santificar a memória”.28

Nota do leitor: Santificar a memória

II – Por que ordem reter?

Cabeça bem feita é árvore genealógica, onde os ramos se prendem ao tronco e pelo tronco comunicam entre si:

III – Como reter?

São quatro as regras propostas por S. Tomás: 1ª ordenar o que se quer reter; 2ª aplicar a isso o espírito; 3ª meditar nisso com frequência; 4ª no acto de reminiscência, tomar pela extremidade a cadeia das dependências, que o resto seguir–se–lhe–á.29

É muito difícil encaixar na mente uma sucessão de palavras, de números, de ideias ou de elementos desconexos; uma vez lá metidos, afogar–se–iam no seu isolamento e depressa se sumiriam. Pelo contrário, uma série faz corpo e defende–se. O que se apoia a sua razão de ser, o que mergulha no seu meio, corre menos o risco de dispersão. Só se conserva o que é, e um elemento, separado de elementos conexos, só é a meias.

[…] o objecto, que provocou intervenção activa da nossa parte, foge mais dificilmente; fica, por assim dizer, agarrado à pessoa.

A vida apaga os rastos da vida […]

Concorrem igualmente, para o acto rememorativo, a faculdade da admiração, a juventude de alma em face da natureza e da vida. Retém–se mais facilmente o que prendeu a atenção.

Portanto não busquemos ao acaso num todo que não se formou ao acaso; procedamos logicamente, utilizando a lógica das coisas, como ela se nos apresenta ou como a encaramos no ponto de partida,

Aprender não é nada, sem a assimilação da inteligência, sem a penetração, sem o encadeamento, sem a progressiva unidade duma alma rica e regulada.

Tende a inspiração elevada, a atenção ardente, a emoção em face da verdade, o zelo da investigação, e nunca haveis de carecer de recordações.

C As notas

I – Como tomar notas

A natureza toma isso a seu cargo. As notas, espécie de memória exterior a nós, “memória de papel”, como dizia Montaigne, devem reduzir–se enormemente com relação às leituras;

A memória é infiel; perde, enterra, quase que não obedece ao apelo.

Para encontrar no momento oportuno a lembrança desejada, seria preciso um domínio de si próprio que nenhum mortal possui.

Há pessoas que possuem cadernos tão recheados e tão numerosos, que uma espécie de desânimo antecipado os impede de os abrir.

[…] as notas são reserva alimentar e pessoal.

Deste modo, pode–se acabar uma obra sem a começar; as notas determinam–lhe o valor, pois já se esboça nelas o plano em estado latente, um plano de gaveta,

As notas assim compreendidas, notas de estudo, notas de inspiração, representam um trabalho rendoso,

II – Como classificar as notas

É bom guardar o rasto das leituras e das reflexões e copiar documentos, com a condição de poderdes folhear,

Desconfiai da mania de coleccionar, que frequentemente se apossa dos que tomam notas. Querem encher cadernos ou ficheiros, dão–se pressa em preencher os vácuos, e empilham textos com o mesmo afã com que se recheiam álbuns de selos ou de postais ilustrados. É prática detestável; recai–se assim na puerilidade; corre–se o risco de vir a ser maníaco. A ordem é uma necessidade; mas é ela que tem de nos servir e não nós a ela.

Mas o método mais prático para a maior parte dos trabalhadores parece ser o método das fichas ou verbetes.

Um sistema muito engenhoso, chamado sistema decimal, é aplicável a todo o género de investigações; quem desejar informações sobre ele, leia a interessante brochura do Dr. Chavigny, A organização do trabalho intelectual.

VIII O trabalho criador

I – Escrever

Não podemos passar a vida só a aprender e a preparar.

Escrevemos primeiramente para nós, para ver claro nos nossos casos, para determinar melhor os pensamentos,

Escrevei e publicai, desde que juizes competentes vos julguem capazes disso e desde que vos sintais aptos para voar.

[…] voai logo que puderdes. O contacto com o público obriga o escritor a constante trabalho de aperfeiçoamento; os louvores merecidos animam–no; as críticas fiscalizam–no;

Nota do leitor: Quando começar a escrever.

Quer que se medite sempre com a pena na mão e que a hora pura da madrugada seja consagrada a este contacto do espírito consigo próprio.

Em todas as coisas, é preciso começar: “o começo é mais que metade duma coisa”, disse Aristóteles. Quem não produz, habitua–se à passividade; o medo de orgulho – porque o orgulho também gera o medo – ou a timidez aumentam mais e mais; recuamos, cansamo–nos de esperar, tornamo–nos improdutivos.

 “O estilo é o homem”. O estilo forma–se, escrevendo; o mutismo diminui a personalidade.

Nota do leitor: Sobre o estilo de escrita

O estilo é verdadeiro quando corresponde a uma necessidade do pensamento e quando se mantém em contacto íntimo com as coisas.

 “Olha para o teu coração e escreve”, diz Sidney.

A vida reconhece a vida.

O discurso deve corresponder à verdade da vida. O ouvinte é homem; logo o discursador não deve ser sombra. O ouvinte mostra–nos uma alma que quer ser curada ou iluminada: não lhe propineis só palavras.

O estilo superior consiste em descobrir os laços essenciais entre os elementos do pensamento, e na arte de os exprimir com exclusão de qualquer balbucio acessório.

O estilo, que convém a um pensamento, é como o corpo que pertence à alma, como a planta que provém da semente: tem arquitectura peculiar. Imitar é alienar o pensamento; escrever sem carácter é declará–lo vago ou pueril.

Os floreados constituem ofensa para o pensamento, a não ser que se empreguem como simples expediente para encobrir o vácuo da mentalidade do escritor.

Nota do leitor: Dos floreados na escrita.

O estilo não é um fim; desvia–o e avilta–o o escritor que faz estilo só pelo estilo. Amesquinha a verdade quem só se apega à “forma”, quem só é rimador em vez de ser poeta, estilista em vez de escritor.

Dos escritores que se prendem aos estilos.

Uma vez que determinastes um pensamento ou sentimento, expressai–o de sorte que todos vos compreendam, como convém a um homem que fala a outros homens e procura atingir neles o que directa ou indirectamente é órgão de verdade. “Um estilo completo é o que alcança todas as almas e todas as faculdades das almas”32.

[…] o artificial ofende a beleza.

II – Desapegar–se de si e do mundo

O estilo, e dum modo mais geral o trabalho criador, requer desapego. Afaste–se a personalidade atravancadora e esqueça–se o mundo.

Não basta trabalhar só no domínio do pensamento: é preciso que o homem todo trabalhe. Mas o homem, que se introduz no trabalho, não deve– ser o homem de paixão, o homem de vaidade, o homem de ambição ou de vã complacência. Todos os homens se apaixonam em determinados momentos, mas a paixão nunca deve ser senhora absoluta. Todos estão expostos à vaidade, mas o mal está em o trabalho ser vaidade.

É preciso trabalhar com espírito de eternidade,

 “Para mim, viver, é Cristo”, diz S. Paulo: eis aí uma vocação e uma certeza de acção vitoriosa. Só é verdadeiramente intelectual quem pode afirmar: Para mim, viver, é a verdade.

Dizia eu que se não deve esquecer o público. “Um livro é tanto mais forte quanto tiver sido escrito mais longe do leitor”,

Buscar a aprovação pública é tirar ao público uma força com que ela contava.

Ora, o pensamento não será a vossa obra, se o cuidado de agradar e de vos adaptar escraviza a vossa pena. O público pensará então por vós, quando vós é que devíeis pensar por

III – Constância, paciência e perseverança

Precisamos de trabalhar com constância, com paciência, com perseverança. A constância mantém–se a pé firme, a paciência suporta as dificuldades, a perseverança evita o gasto da vontade.

Nota do leitor: As três virtudes para o trabalho criador.

Esta análise, que relembra a teoria do Divertimento de Pascal levar–nos–ia longe.

Nota do leitor: “[…] deixe-se um rei sozinho, sem nenhuma satisfação dos sentidos; sem nenhum cuidado no espírito, sem companhia, pensar em si inteiramente à vontade; e se verá que um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias.” (Pascal)

É belo viver só para aquilo que se está fazendo, como Deus que nunca se separa da sua obra.

Durante as horas de trabalho intenso, assalta–nos a tentação de interromper o esforço, desde que o menor incidente traz a “languidez” e provoca o “tédio” de que fala Nicole.

Quando o tédio se prolonga, apetece mais plantar couves do que prosseguir um estudo fatigante; tem–se inveja do trabalhador manual mas este por sua vez apoda–vos de “poltrão”, por estardes muito tranquilo numa poltrona.

Se vos sentirdes muito cansados, interrompei voluntariamente o trabalho para depois o retornar com novo afinco.

Uma dificuldade vencida ensina, a vencer outras dificuldades; um esforço poupará outros esforços: a coragem dum minuto vale tanto como um dia, e o trabalho duro tanto como o trabalho fecundo e alegre.

Habituamo–nos a pensar como nos habituamos a tocar piano, a andar a cavalo e a pintar.

Os leitores acharão muito naturais os vossos êxitos, criticarão duramente os vossos desfalecimentos; não suspeitarão quanto trabalhastes.

Respeitai cristãmente a Providência de Deus. É Ele que põe as condições do saber: a impaciência é revolta contra Ele.

O verdadeiro intelectual é, por definição, perseverante. Assume a tarefa de aprender e de instruir;

IV – Fazer tudo bem feito e até ao fim

Não rematar uma obra é destrui–la. “Quem fraqueja no decurso duma obra é irmão daquele que destrói o que fez”, lemos nos Provérbios (18, 9).

Nota do leitor: Sobre terminar uma obra que começou.

Vós, que sois consagrados, decidi–vos a ser fiéis. Há em vós uma lei: obedecei–lhe.

O abandonar um projecto ou uma empresa denota fraqueza.

Quando tiverdes realizado um trabalho, deixai–o repousar; dai tempo ao tempo e, só depois de um prazo mais ou menos longo, volvei para ele o olhar. Se nessa altura vos desagrada, recomeçai. Se estiver ao vosso nível criticai–o sem dó nem piedade em todos os pormenores, e voltai ao trabalho, até que possais dizer: esgotaram–se–me as posses; que Deus e o próximo me perdoem as deficiências.

Nota do leitor: Da crítica à própria obra.

Fareis sempre muito, se concluirdes o que fazeis.

Ter uma vocação é ter a obrigação do perfeito.

Dai sempre o máximo no momento da criação. Concebida a obra, tratai–a como se trata uma criança que se alimenta e se educa,

V – Não ir além das próprias forças

[…] não tentes coisa alguma superior às tuas posses”.

“Não alargues o teu destino, nem procures ultrapassar o dever que te é imposto”.

IX o trabalho e o homem

I – Guardar o contacto tom a vida

O estudo deve ser acto de vida, deve ser útil à vida, deve sentir–se impregnado de vida.

No saber, tudo é esboço: concluída a obra, temos o homem.

É preciso ser sempre mais do que se é: o filósofo deve ser um pouco poeta; o poeta, um pouco filósofo; o artista deve ser poeta e filósofo de vez em quando, e o povo até gosta disso.

Quem só pensa no seu trabalho, trabalha mal; diminuiu–se; toma um vinco profissional, que se converterá em tara.

Encontraria eu a Deus no meu quarto, se nunca fosse à igreja nem olhasse para o céu que “canta a sua glória”?

Filosofia, arte, viagens, cuidados domésticos, finanças, poesia e ténis, formam alianças e não se contradizem senão pela harmonia.

II – Saber distrair–se

Cortem–se os excessos. O trabalho, precisamente porque é dever, exige limites que o mantenham em vigor e duração e lhe procurem, no decurso da vida, a maior soma de efeitos de que é capaz. A intemperança é pecado porque nos destrói,

[…] “estudar tempo de mais é uma maneira de preguiça”. É preguiça directamente, por ser incapacidade de dominar um determinismo, de manejar um freio. É preguiça indirectamente, porque recusar um repouso é recusar implicitamente um esforço que o repouso permitiria e que o excesso de cansaço compromete.

O melhor meio de repousar seria ainda, se possível fosse, não se cansar, quero dizer, equilibrar o trabalho de maneira que uma operação servisse de descanso a outra.

Nota do leitor: A melhor forma de descansar.

Em suma: sem verdadeiro repouso, não há verdadeiro trabalho, reina a desordem.

Os jogos, as conversações familiares, a amizade, a vida de família, as leituras distractivas nas condições apontadas, a vizinhança da natureza, a Arte fácil, um trabalho manual muito suave, o divagar inteligente através duma cidade, os espectáculos pouco fortes e pouco apaixonados, Os desportos modernos: tais são os elementos de repouso.

III – Aceitar as provações

É pueril querer defender as próprias obras ou estabelecer o valor delas. O valor defende–se a si próprio.

Calai–vos; humilhai–vos diante de Deus; desconfiai do vosso juízo e corrigi as vossas faltas;

Se a crítica for justa, haveis de resistir à verdade?

IV – Saborear as alegrias

O intelectual cristão escolheu a renúncia, mas a renúncia enriquece–o mais do que a altiva opulência.

A recompensa duma obra é o concluí–la; a recompensa do esforço é o ter crescido.

O intelectual é jovem até ao fim. Dir–se–ia que participa da eterna juventude da verdade. Amadurece geralmente muito cedo, mas conserva–se ainda na pujança de vida quando a eternidade o vem recolher.

V – Gozar antecipadamente os frutos

O verdadeiro intelectual não teme a esterilidade, a inutilidade; basta que a árvore seja árvore para produzir frutos. Os resultados chegam por vezes tarde, mas chegam sempre;

Cada indivíduo é único: portanto cada fruto do espírito será também único: O único é sempre precioso, sempre necessário.

Palavras chaves: pensamentos de A. D. Sertillanges, frases de A. D. Sertillanges, fichamento a vida intelectual, resumo a vida intelectual, intelectual, estudos, leitura, cultura, produção, arte, espiritualidade, descanso.

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Published by Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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