Sobre Poesia

Poesia e Ideologia — Otto Maria Carpeaux

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Devo ao meu amigo José de Queiroz Lima a sugestão de aplicar à relação entre poesia e ideologia o resultado da leitura do livro Practical Criticism, da autoria do eminente crítico inglês I. A. Richards. Era uma leitura dificílima: um estudo muito técnico, baseado em documentação imensa, e que ficou — o próprio livro — no estado de documentação. Contudo, valia a pena: é talvez o primeiro livro rigorosamente científico sobre poesia. Vale a pena abrir as brenhas compactas dessas investigações psicológico-pedagógico-estéticas, reunindo-as a outros resultados, alheios e próprios, extraindo-Ihes uma doutrina. Vamos ver, então, que a poesia mais velha e a poesia mais moderna, igualmente, não se compreendem sem o conhecimento das ligações íntimas entre poesia e ideologia. Vamos ver, então, que o estudo de I. A. Richards é um dos livros mais espantosos que existem: um livro que abre novos horizontes ao mundo de luz da poesia, que abre novos horizontes ao mundo noturno da humanidade.

Conhecem, decerto, a frase dos irmãos Goncourt — “Ce qui entend le plus de bêtises dans le monde est peut-être un tableau de musée.” [O que ouve mais bobagem no mundo é talvez uma pintura de museu] Richards não é desta opinião; acha que um poema está ainda em melhores condições de avaliar a imbecilidade humana, profunda como o mar. Ele é professor do famoso Magdalene College, da Universidade inglesa de Cambridge, e as experiências que sofreu com a leitura e interpretação de poemas ingleses pelos estudantes eram horríveis. Não resolvido a resignar-se, como muitos outros professores que começam entusiastas e acabam charlatães, estudou os obstáculos que se opõem à compreensão da poesia, para poder combatê-los, e chegou a um sistema rigorosamente estabelecido de dez “dificuldades principais”: 1) Incapacidade de compreender o sentido; a maioria dos homens lê poemas só “com o sentimento”; é mostra-se incapaz de “construir as frases”, de traduzir as frases dum poema em frases razoáveis de prosa. — 2) Falta de “compreensão sentimental”, acolhimento do poema como se procurassem uma notícia, um fato. — 3) Incapacidade de compreender metáforas, de traduzir a linguagem figurativa. — 4) Faltas mnemônicas: intromissão de lembranças e associações pessoais do leitor, que se substituem ilegitimamente ao trabalho do poeta. — 5) “Stock responses” [algo como “estoque de respostas”], certas ideias, por assim dizer arquivadas no espírito do leitor, frutos da educação, de leituras anteriores, do “espírito dominante” do meio nacional e social; o leitor responde ao poema por “stock responses”, em vez de responder por compreensão espontânea. — 6) e 7) Sentimentalismo e o seu contrário, a “inibição”, facilidade excessiva de reação sentimental ou endurecimento grosseiro do coração. — 8) Preconceitos doutrinários, que se opõem à “mensagem” real ou pressuposta, que o poema exprime. — 9) Preconceitos técnicos, que julgam a forma sem consideração da relação indissolúvel entre forma e sentido; nesses preconceitos encontram-se os “acadêmicos”, idólatras da forma metrificada, com os “modernos”, fanáticos intolerantes das formas livres. — 10) Preconceitos críticos: sedimentos de teorias críticas que prescrevem à poesia um papel determinado e condenam um poema em que está desempenhado outro papel da poesia. Esta “décima dificuldade” é talvez a mais profunda de todas, reconduzindo à primeira, a “incapacidade de construir”. “EI Cosmos” — diz uma pessoa no romance Belarmino y Apolonio, de Ramón Pérez de Ayala — “el Cosmos está en el diccionario de Ia lengua castellana”. Na verdade, é assim; é apenas preciso pôr em ordem as palavras, e esta é a tarefa do poeta; mas o mundo quer prescrever-lhe as suas leis de desordem prosaica, e se o poeta não obedece, o mundo responde pela incapacidade de construir o poema, de ler no dicionário, de compreender o Universo. Em suma, os homens não sabem ler.

Os homens não sabem ler. Aplicam a um poema o mesmo processo errado que aplicam a anúncios de jornal ou a notícias de propaganda política: contentam-se com o sentido superficial das palavras, sem explorar a intenção daquele que fala. Confundem duas coisas que estão juntas em cada palavra falada ou escrita: a expressão e a intenção. Consideram apenas o que o outro lhes diz, sem considerar como o diz e porque o diz. Confundem o “statement”, a afirmação, e a “expression.”. Confundem na noção vaga “sentido” quatro coisas muito diferentes: o sentido propriamente dito, a afirmação; o acento sentimental da afirmação, sempre mais ou menos acompanhada de emoções; o tom, que depende da atitude do que fala em relação ao ouvinte; e a intenção, consciente ou inconsciente, com a qual o escritor quer influenciar o espírito do leitor. Num poema ou em qualquer escrito estão sempre juntas essas quatro significações do sentido, em dosagem diferente. A maneira de ler deveria depender dessa dosagem. Mas dependem das qualidades intelectuais e emotivas do leitor as suas preferências de compreensão (e má-compreensão), dirigidas ao sentido lógico, ao “sentimentalismo”, ao tom ou às intenções do poema, e dessas preferências provêm as “dez dificuldades” que se apresentam na leitura de poesia. Os homens não sabem ler.

Se isto está certo, não se limitará à poesia inglesa nem à poesia em geral; será uma incapacidade comum e universal, de origem mista — intelectual e emotiva — e de consequências de alcance enorme. Mas justamente esta enormidade é que conduz às generalizações precipitadas da “psicologia das massas”, dum Le Bon, por exemplo, ao pessimismo misantropo que não admite a possibilidade de aperfeiçoamento moral e, intelectual dos homens, chegando assim à “bourreaucraie” de De Maistre e à “sagrada dictadura deI sabre” de Donoso Cortés. Um inglês, porém, não será capaz de tais especulações. O gênio inglês inclina-se mais à ciência experimental; e I. A. Richards fez um experimento científico à maneira dos naturalistas, impondo assim à crítica literária um rigor anteriormente desconhecido.

A vítima do seu experimento era um público escolhido: 60 pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, todas elas de certo nível mínimo de educação e cultura, estudantes dos mais maduros, médicos, advogados e juízes; muitos professores de língua e literatura inglesas; e, por cúmulo, alguns escritores e críticos literários. A todos aqueles Richards propôs 13 poemas ingleses, mandando-Ihes exprimir por escrito, e com toda a franqueza, a sua opinião. Para garantir esta franqueza, Richards escolheu, quando se tratava de poetas muito lidos, poemas pouco conhecidos, e ocultou os nomes de todos os 13 autores: entre eles, grandes poetas do passado, como Donne, grandes poetas modernos; como, G. M. Hopkinse Hardy, falsas celebridades como Bailey, umas lamentabilidades da “engraçada” “magazin poetry”. Mas para o auditório eram 13 poemas anônimos, destinados a fazer falhar os estudantes, médicos, juízes e professores de língua e literatura inglesas. Falharam, e falharam junto com eles os escritores e os críticos literários.

A grande maioria deles não era capaz de “construir as frases”, de reconhecer o sentido lógico num poeta tão rigorosamente lógico como Donne, inacessível a uma leitura “com o sentimento só”. Ao contrário, em face de poetas de sensibilidade íntima, como Christina Rossetti, ou Edna St. Vincent Millay, aquela maioria insistiu num “dictionary understanding of feeling” (compreensão do sentimento por meio do dicionário), criticou com prosaísmo mesquinho cada palavra, chegando à mesma conclusão: incompreensível. A língua metafórica, tão própria à poesia e a cada esforço sério de expressão verbal, causou as maiores dificuldades: quase todos teriam preferido, e em todos os poemas, uma “expressão mais direta”, isto é, menos poética; salvou-se, apenas, a retórica vazia de Alfred Noyes, em que a torrente de eloquência esconde a incoerência das imagens, mas ainda aqui a palavra “rei”, aplicada a um poeta, foi mal entendida como expressão de fé monárquica! As “faltas mnemônicas” agiam quase sempre em favor dos poetas inferiores (Bailey, Pellew), cujos lugares-comuns agradaram, enquanto as expressões muito pessoais dum G. M. Hopkins, que não fazem ressoar associações pessoais dos leitores, ficaram “incompreensíveis”. “Stock responses”, originados por comparações inadequadas com conhecidas peças de antologias escolares, revelaram-se como antolhos próprios aos literariamente cultos. O sentimentalismo, doença endêmica dos que gostam de ler versos, fê-los estimar os “versos de magazine” de Pellew e rejeitar a casta discrição de Hardy, enquanto outros, os doentes de “inibição sentimental”, julgaram suspeitos de “falso sentimentalismo” a emoção violenta de D. H.’ Lawrence; mas ninguém gosta de inculpar-se de sentimentalismo, e por isso um poema do inocente Longfellow, poeta preferido de todos os anglo-saxões médios, tornou-se, pelo anonimato, objeto de rejeição unânime. Já disse que não compreenderam o “rei” no poema de Noyes, pobre rei espiritual que excitou protestos de republicanismo impenitente; mas a maior vítima dos preconceitos doutrinários foi o maior poeta barroco, John Donne, cuja sublime teologia poética foi desaprovada pelos “cépticos”, sem ser reconhecida pelos próprios cristãos. Não vale a pena expor minuciosamente as censuras aos ritmos irregulares de Christina Rossetti e os louvores às rimas banalíssimas dum certo Rev. Studdert Kennedy, censuras e louvores da parte de homens incapazes de reconhecer a forma de soneto quando o pérfido Richards apresentou um transcrito em disposição tipográfica fora do costume. Esses mesmos leitores ousaram condenar um poema de Hardy (“não excita entusiasmo”) e outro de Donne (“é frio e brutal”), em nome dum ideal convencional de poesia.

É preciso lembrar que os protocolos do experimento foram assinados por pessoas de ambos os sexos e de todas as idades, todas de considerável e algumas de grande cultura literária.

O livro de Richards é destinado a explicar por métodos psicológicos esse malogro, e a tirar dele conclusões pedagógicas. E separam-se aqui os nossos caminhos. O crítico inglês tem razão em acusar a superficialidade do nosso método de ler, recomendando leituras repetidas, com espírito humilde; mas prefiro o conselho de outro crítico inglês, Theobald Ritchie, de escolher-se um poeta de predileção e viver com ele até chegar a uma completa identificação emocional, o que significaria a abertura do espírito para toda poesia. Richards tem igualmente razão ao denunciar os mesmos processos de leviandade e rotina na crítica literária, ela também incapaz, em geral, de “ler no dicionário do Cosmos”, e de “construir as frases”. Mas o mau êxito dessa crítica em face de todos os grandes poetas sugeriu-me outras conclusões, de alcance maior, abrindo novos horizontes sobre o noturno mundo extrapoético da humanidade.

Toda poesia é difícil. Tem sempre algo de acadêmico-aristocrático para uma elite, ou algo de voz clamante de profeta no deserto, ou algo de hermético, entre atitude e intenção. Todas as atitudes poéticas — popular pelos poetas cultos é um artifício. São atitudes; e o primeiro mal-entendido da poesia é a confusão entre atitude e intenção. Todas as atitudes poéticas, a parnasiana, a romântica, a supra-realista — não passam de — atitudes. A verdadeira intenção de toda verdadeira poesia é a expressão duma verdade pessoal, humana; e contra todas as atitudes artificiais surge, como instância suprema, a figura do mais completo, porque mais humano, dos poetas: François Villon. A poesia de Villon, os poemas mais bem construídos em língua francesa, é realmente uma lição sobre a essência da poesia: o poeta com a vida mais desordenada chega a ser o construtor de supremas ordens verbais; superior à atitude é a intenção, e a intenção da poesia é: impor uma ordem ao caos das palavras desordenadas. A ideia materialista de Thomas Henry Huxley — que uma multidão de macacos, datilografando durante séculos palavras e frases insensatas, chegariam, com o tempo e por mero acaso, a compor todos os livros do British Museum — opomos a doutrina idealista: que é o “nisus formativus”, a “força intelectual” da poesia que impõe a ordem e transforma a língua em dicionário do Universo; a métrica regular é apenas um caso particular dessa ordem, uma possibilidade entre outras, se bem que de superior significação histórica. Com ela começa o artifício; defendendo-se, a poesia torna-se tanto mais artificial quanto mais o mundo e a vida se artificializam. O resultado exterior desses artifícios são as atitudes mencionadas que encobrem a verdadeira intenção poética: até uma atitude que faz desaparecer completamente a intenção, produzindo uma poesia intencionalmente “incompreensível”.

Conhecemos, na história da poesia, dois exemplos de tal poesia “incompreensível”, e não é por acaso que ambos pertencem a épocas da máxima florescência poética: a poesia do barroco e a poesia do século XX. Assim, não foi por acaso que o século de T. S. Eliot redescobriu a poesia barroca dos metaphysical poets, Donne, Crashaw, Traherne; que o século de Gorda Lorca redescobriu a poesia barroca de Góngora; que o século de Claudel redescobriu, pelo menos, a poesia pré-barroca de Maurice Scève. O artificialismo das poesias do século XVII e do século XX não consiste senão numa exigência mais imperiosa de distinguir entre “statement” e “expression”, entre sentido e sentimento, entre atitude e intenção. O que mudou, tornando-se mais artificial, não foi propriamente a poesia, mas o mundo: a intenção poética permanece invariável, mas a transformação do mundo impõe ao poeta outra atitude.

A atitude é o problema menos estudado, e talvez o mais interessante na história da poesia. Todas as existentes histórias da poesia moderna, sobretudo da francesa, descrevem a evolução partindo do romantismo, através do parnasianismo e do simbolismo, até o suprarrealismo, como evolução autônoma. Valeria a pena estudá-la como movimento imposto de fora. Hugo é um poeta público, representando a “voz do povo”, a função pública da poesia. Já em Baudelaire a atitude romântica significa oposição e isolamento. Parnasse e simbolismo aceitam essa posição, e toda a evolução interior tem por fim recuperar a perdida função pública da poesia. A poesia inglesa, por caminhos muito diferentes, chegou ao mesmo fim: ao neoclassicismo anti-barroco seguiu o romantismo e, a poesia privada da segunda metade do século XX evolve o mesmo modo para a poesia pública, da qual já possuímos as primeiras tentativas.

Não chegou ainda ao fim essa evolução. E enquanto não chega, a poesia contemporânea (e os seus parentes de séculos precedentes) é interpretada pelos leitores como a poesia do século XIX, à qual estamos acostumados em forma de “stock responses”. “A poesia moderna é incompreensível” significa, na boca dos leitores: “não é como a poesia romântica, não tem, para nós outros, função pública”. A oposição que a poesia moderna encontra não é a consequência de incapacidades indeléveis, intelectuais e emotivas, mas significa uma resistência ideológica, existencial e por isso irresistível, às intenções ideológicas da nova poesia, à tentativa poética de impor uma ordem humana ao caos das coisas modernamente desordenadas.

Falou-se em “ideologia”. E acredito que com isto se revela o aspecto mais grave do experimento de I. A. Richards. A poesia é difícil: quer dizer, ela sofre interpretações inadequadas, sem que possuamos meios decisivos para convencer os enganados. Mas não é só a poesia que está neste caso.

Há certas regiões de atividade espiritual onde chegamos a resultados inequivocamente fixáveis, chamados “leis”: a matemática, as ciências matemático-físicas, e, em grau menor, todas as ciências naturais. Há outras regiões de atividade espiritual em que a validade dos resultados está assegurada por meio de leis de convenção, que se baseiam na aceitação geral dos “fatos consumados”: direito, organização econômica e privada da vida. Mas há outras regiões, ainda, onde não existem leis, onde imperam abstrações, carregadas de valores emotivos, disfarçados em doutrinas intelectuais: ética e moral pública e privada, metafísica, religião, estética, tudo isso que gira em torno das noções Liberdade, Nação, Justiça, Amor, Beleza, Saber e Fé. Os valores emotivos que acompanham essas abstrações aparentemente intelectuais surgem das profundidades da nossa existência humana, das experiências eternas de nascimento e morte, do isolamento do homem no Universo, do nosso desamparo e das nossas esperanças. São experiências vitais, existências, que se aliam a outras necessidades existenciais, mais materiais, da vida do homem entre os homens na sociedade. Tudo isto constitui um conjunto de valores emotivos que, por força de abstrações, nos aparecem em forma de opiniões intelectualmente transmissíveis: e a isto chamamos ideologias. São as ideologias estéticas que se opõem à compreensão da poesia. São as ideologias de toda ordem que se opõem à compreensão do mundo. Por força das ideologias, estamos impedidos de “construir frases”, de ler poesia. Por força das ideologias, estamos impedidos de ler no dicionário do Cosmos, de “construir o mundo”. As ideologias opõem-se à ordem. E um caso especial dessa resistência ideológica é a nossa atitude caótica perante a suprema ordem das palavras, a poesia.

A resistência à poesia não é, pois, de ordem intelectual — falta de capacidade mental ou de educação — nem puramente de ordem emocional — falta de disciplina sentimental. Por isso não tenho muita fé em providências pedagógicas. Repugna-me sempre a confiança ingênua dos anglo-saxões na onipotência da educação; o leitor mais bem educado perder-se-ia nas vertigens da poesia de Hoelderlin, e os conselhos mais razoáveis afastá-lo-iam da poesia musical de Mallarmé, da poesia hermética de Góngora. Gostaria também de opor ao sábio professor Richards certa frase saborosa do grande cético Henry Adams: “Um mestre-escola é um empregado encarregado de contar mentiras às crianças e de velar as verdades aos adultos.” Há, porém, em contradição a esta, outra frase do mesmo Henry Adams: “É tarefa da verdadeira educação resolver o problema seguinte: guardar a ordem no caos, a direção no espaço, a disciplina na liberdade, a unidade na variedade; tarefa eterna, sentido também de toda religião, filosofia, arte, política e economia.” Aos prisioneiros do falso conceito parnasiano da poesia repugnaria a inclusão das palavras “política” e sobretudo “economia” nesta declaração solene; mas justamente nisso reside a consciência clara da origem ideológica da nossa inibição em face da poesia.

Na verdade, a “inibição dos sentimentos” é muito menos um defeito pessoal do que a consequência de convenções sociais: ainda no século XVIII, a gente chorava muito, não se envergonhava, em nenhuma ocasião, das lágrimas copiosas; enquanto hoje a convenção social proíbe severamente o chorar, sobretudo o chorar dos homens e em público, Essa inibição por convenção social é muito responsável pela perda da função pública da poesia: a forte emoção que a poesia sugere fica reservada ao privado, tornando-se por isso objeto da indisciplinada superirritabilidade do sentimento à qual chamamos sentimentalismo. Mas não faltam outras formos de sentimentalismo, permitidas e até muito em voga no público. É aquele outro sentimentalismo que aplica a objetos presentes as lembranças nebulosas do passado, transfigurando e embelezando, por exemplo, “os dias felizes da mocidade”- “cualquiera tiempo passado fué mejor”. O sentimentalismo passadista é, porém, um caso particular das reações inadequadas ao objeto, como reagimos com emoções inadequadas às imagens do sonho. Uma parte desses sentimentalismos nos é imposta pela autoridade das convenções sociais e pela própria educação: são os chamados “stock responses”. Não é justo condená-los indiscriminadamente. Os “stock responses”, em nós, constituem-se de resíduos do fundo poético da humanidade, e se eles faltassem completamente, nenhuma poesia, velha ou moderna, encontraria eco em nosso espírito. Mas os “stock responses” são comuns a todos, e a larga divulgação de pensamentos, sentimentos e ideias traz sempre consigo uma estandardização, uma petrificação. Em cada indivíduo, esses “stock responses” petrificados induzem a especulações abstratas sem a base de experiências pessoais, tornam-se fontes de preconceitos sentimentais; em público, os “stock responses” perdem o aspecto, transformam-se aparentemente em doutrinas, as ideologias.

Daí colocarem-se tão arrogantemente, entre nós e a poesia, preconceitos de ordem doutrinária. Mas nem sempre se trota da ridícula repulsa dum republicano em face da palavra “rei”, nem da estranha ignorância de ingleses cultos em face da poesia teológica de Donne. Estou convencido disto: se Dante não fosse um nome consagrado, e se fosse realmente lido (o que não é), todos os acatólicos e grande parte dos católicos modernos o recusariam. Consciente disso, Papini ousou dizer que só um católico florentino pode compreender Dante. Com toda a evidência, isto não é verdade. Mas há nisto um dos mais graves problemas da estética e da crítica: o problema da sinceridade.

Do ponto de vista do leitor, parece impossível gostarmos sinceramente dum poema cujas intenções não correspondem à direção do nosso próprio espírito. Parece, mas não é assim. Gostamos de Stendhal e de Dostoievski, de Dante e de Milton, de Goethe e de Leopardi, indiscriminadamente, aproveitando-nos daquilo a que Coleridge chamou “the suspension of disbelief”, da suspensão da nossa própria crença diante da obra do poeta, a cuja crença nos confiamos sinceramente, confiando na sinceridade do poeta. Isto quer dizer: o problema da sinceridade, que surgira do lado do leitor, aparece agora do lado do poeta. Com efeito, a sinceridade é a última fé dos que perderam qualquer outra fé. E o último critério. Mas, por desgraça do crítico literário, a sinceridade é indefinível.

Pela última vez, volto ao livro de Richards. A sua definição da sinceridade, muito discutida, parece-me de grande valor: “a lendency towards increased order”. “Uma tendência para ordem crescente”. A sinceridade da poesia é a garantia da concordância entre a ordem interior, pessoal, e a ordem do mundo. Mas que ordem? O mundo é caótico, e o mundo interior o é também. Ao caos opomos o Cosmos, “el dicionário de la lengua castellana”. No dicionário cósmico estão bem ordenados esses elementos da condição humana, que constituem, igualmente, as fontes inesgotáveis das ideologias e os temas eternos da poesia: “o isolamento do homem no universo, a pavorosa incompreensibilidade de nascimento e morte, a imensidade do espaço e o lugar do homem no tempo, e o nossa infinita ignorância humana que nos impõe a humildade”. A muitos a citação parecerá um pouco estranha; e, no entanto, é bem velha. Richards tomou-a ao Chung Yung, o velho livro clássico dos chineses, em que a poesia é oposta à ordem perecível das coisas humanas (diríamos: às ideologias) e identificada com o “Caminho”, o caminho para a divindade. E o sábio chinês conclui: “O céu conferiu-nos a natureza humana: o acordo com ela é o Caminho”.

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Published by Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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