Sobre Poesia

Do Épico e do Lírico — Massaud Moisés

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I

Preliminares. As artes poéticas, as teorias literárias, as retóricas tradicionais têm insistido num ponto que está a merecer cuidadoso reexame. Trata-se do conceito de poesia lírica e poesia épica, e suas diferenças fundamentais. Comecemos por entender que a palavra lírica deriva de lira. Os poetas gregos, e depois os latinos, recitavam e cantavam suas composições ao som desse instrumento, que se prestava perfeitamente como acompanhamento e pano de fundo musical. O poeta exprimia seu mundo “subjetivo, interior, os sentimentos, as contemplações e as emoções da alma”, como diz Hegel em seu Curso de Estética (3ª parte, 3.a secção, “Poesia”, Cap. Ill, Das diferentes espécies de Poesia). Com o tempo, a lira (ou qualquer outro instrumento que veio a ser usado: alaúde, flauta) foi posta de lado. Apoesia passou apenas a ser recitada, nos fins da Idade Média. Entretanto, o caráter musical permaneceu, embora transformado e atenuado. Seu conteúdo manteve-se aquele dos começos, e ainda hoje a poesia lírica se diferencia por ser subjetiva, traduzindo emoções e sentimentos íntimos do poeta.

O poeta lírico está preocupado com o Eu; pouco lhe interessa o que vai fora. Mesmo quando se projeta para fora de si, o poeta vê a si próprio aderido àscoisas exteriores. Em suma, atitude egotista, introvertida, refletindo males pessoais que só o canto pode minorar.

A poesia épica tem sido considerada como diametralmente oposta à lírica. Apalavra épica liga-se a epos, que significa “recitação” em Grego. Seu conteúdo revela ação, luta, e, por isso, baseia-se num fato histórico de grande importância, transformado, na psicologia do povo, em verdadeiro mito ou lenda. Ao poeta épico ficaria a incumbência, natural, espontânea, fruto do progresso geral, de procurar ali a inspiração para sua obra. A função deleseria objetiva, fora de si: a de assimilar, coordenar, costurar, as várias frações de mito, que circulam, inconscientes, por entre o povo. Enquanto o poeta lírico está voltado para o Eu, a sondar-lhe as vivências profundas, o épico faz-se representante de Nós, quer dizer, procura fixar o grande feito de transcendência pátria, que reflete o apogeu histórico de uma nação. 

Ainda nesse diapasão, as preceptivas são unânimes em afirmar que a forma, a linguagem, a metrificação, a estrutura deve ser solene, fidalga, marcial, altiloqüente, retumbante. As partes devem ser cinco (proposição, invocação, argumento, narração e epílogo); o “maravilhoso” (interfluência dos deuses no plano da ação do poema), deve estar presente; a ação começa próxima do fim; o metro é o decassílabo, chamado também de heróico, por isso mesmo, e assim por diante.

A poesia lírica usa, normalmente, de metros curtos, destravados, fluentes, em busca do acorde musical que lhe serve de base.

Quer-me parecer, entretanto, que tal diferenciação tradicional, aceite pelas preceptivas, é por demais superficial, extrínseca, deixando de fora uma quantidade de aspectos por todos os títulos merecedores de análise. Primeiro que tudo: é preciso levar em conta aquilo que, na poesia épica em geral, é de raiz forçosamente lírica, condicionando o aparecimento de episódios em que os impulsos egotistas, particulares, estão à frente de qualquer manifestação objetivista, coletivista. Para não alongar demasiadamente o exame dessepormenor, tenham-se como exemplos os episódios lírico-amorosos dos Lusíadas, que acabam por ser bem mais importantes que o resto. “Inês de Castro”, “Gigante Adamastor”, “Os Doze da Inglaterra”, “Ilha dos Amores” constituem-se, ao fim de contas, no melhor do Poema, enquanto as cenas históricas, bélicas ou semelhantes, têm relevo menor.

Em segundo lugar, e mirando o reverso da medalha, é necessário não exagerar a importância das características formais. Muitos poetas românticos — Vítor Hugo à frente, Guerra Junqueiro e Castro Alves seguindo-lhe as pegadas — utilizaram-se de recursos formais típicos da poesia épica na composição de poemas líricos. Por outro lado, o “Y-Juca Pirama”, não obstante o núcleo desejadamente epicizante, foi construído quase todo segundo esquemas métricos da poesia lírica, em que pese ao ritmo onomatopaico, aproveitado daquilo que seria tipicamente indígena em tal assunto.

Decorre daí, nitidamente, uma conclusão imediata: não se pode, não se deve, sob pena de confundir os planos, encarar o épico e o lírico, enquanto espécies poéticas, segundo essas razões esquemáticas, superficiais e extrínsecas. O problema deve ser analisado em toda a sua profundeza. Há que apelar para uma análise mais rigorosa, que, penetrando na interioridade das duas espécies, permita uma visão intrínseca, reveladora de sua essência. E, ainda, que considere o épico e o lírico em seu dinamismo. A tradição, pela lei do mínimo esforço, solidificou-os, estereotipou-os em verdades assentes, o que não corresponde à verdade do organismo vivo, que é, sempre, a Literatura. Qual será, pois, o modo mais coerente de ver o lírico e o épico?

II

Lírico. A primeira característica do lírico é a ambigüidade, resultante do ato permanente de auto-analisar-se, e, em decorrência, de autoflagelar-se, narcisista e mazoquistamente, e de auto-esteticizar-se, na medida em que parte de si próprio, de seu mundo interior para construir a obra de arte e tentar reconstruir o mundo exterior. É, por isso, uma categoria estética primeira e primária. Explica-se: o ato de introjetar-se, qual caramujo, só permite esquadrinhar as primeiras camadas exteriores, exatamente porque a auto-análise, sobre ser discutível em Psicologia, só alcança conhecer o Eu mais próximo, superficial, sentimental, emocional. O Eu profundo estaria vedado à imersão lírica, apenas preocupada com aquilo que a determina: emoção, sentimento, comoções de superfície, facilmente consciencializáveis. Vem daí que a arte resultante seja de curto alcance e breve duração. E por aí se explica que todo poeta comece por ser lírico, precisamente pelo fato de o lirismo ser a manifestação primeira e imediata das inquietudes que lhe vão na alma. Por isso, ser poeta lírico é obedecer a impulsos semelhantes àqueles que, na adolescência, obrigam a transformar em sentimentos líricos todadúvida e incerteza inerente à grande crise de personalidade própria da idade. É imediato deduzir que o ato lírico estaria na raiz de todo ato estético, e sobretudo, do ato poético. Todo artista começa por ser lírico, em obediência às perplexidades de quem começa na Vida ou na Arte.

Nasce daí um tipo de poesia que pode receber o nome de poesia do eu, poesia confessional ou poesia emocional. É de rasteiro interesse, pois o poeta só atinge, pela emoção que alcança conhecer e pela confissão que alcança realizar, aquelas primeiras camadas íntimas, que, afinal, são de acesso fácil a todos os indivíduos, respeitados os graus, as diferenças de sensibilidade e de educação estética. Em qualquer hipótese, a intuição, individualista, só consegue apreender alguma coisa do mundo fugaz e superficial constituído pelas vivências emocionais. A obra de arte em que o produto da intuição se concretiza, só pode ser passageira e de parco significado enquanto comunicação de realidades novas, que, em última análise, é o que deseja o leitor ávido de conhecer o novo a fim de enriquecer-se na vida interior. Compreende-se, diante disso, que ser poeta emocional é estar no primeiro estágio da carreira artística, e quem ali permanece, é poeta de segunda ou terceira categoria, dentro duma visão exigente e, tanto quanto possível, universal.

Tomemos um exemplo, que vale ainda para outros casos: Casimiro de Abreu. Sua poesia, sabemos bem, reflete intensa emoção, sentimento, dor, dividida entre o trato amoroso aparentemente idealista e a saudade da Pátria, da família, do lar e da infância, onde há tanto de masoquismo e narcisismo. Por isso, a obra poética de Casimiro de Abreu é de breve horizonte, ligeira, superficial, “artificial”, pois só atinge as camadas em que se coloca o lirismo egoísta, igual a todos os egoísmos sentimentais e emocionais próprios de toda a gente e de sempre, em determinada época da vida ou circunstância moral. O conteúdo lírico dessa poesia, por ser pobre, é facilmente esgotado pelo leitor, mesmo o medianamente dotado de sensibilidade e gosto estético, tais as semelhanças que vai encontrando entre a obra e seus estados de espírito. Vem daí que, quanto mais adolescente, mais próximo está o leitor de sentir algum valor nessa poesia de lugares-comuns para aquela idade. Os leitores doutras idades mentais, julgá-la-ão cheia de tibiezas, trivialidades amorosas. Quando alguém vê na poesia de Casimiro uma experiência mais permanente do que os anos juvenis vividos pelo Poeta (21 anos), é quase certo que lhe está faltando o amadurecimento jamais atingido pelo poeta.

Superada a adolescência, o poeta ultrapassa o lirismo superficialmente emocional, confessional, sentimental, e ganha outros horizontes, de mais largas dimensões.

III

Épico. É aqui que entra o épico, enquanto categoria poética vista em seu valor intrínseco e essencial, traduzindo, exatamente, o momento em que o poeta atinge a maturidade interior tanto almejada.

Diga-se desde logo em que consiste: o plano épico pode ser considerado aquele para o qual acaba tendendo todo grande poeta, qualquer que seja a época, o movimento ou a tendência literária. Significa que o poeta alcança dilatar o Eu ao infinito de suas possibilidades. Antes enclausurado, voltado para si numa introspecção miúda, empequenecedora, o Eu agora abre-se, alarga-se até onde pode, a fim de abarcar o mundo, que descobre grande, fora de si, e à espera da grande revelação, que não vai tardar. Ultrapassa, assim, a contemplação única de seu umbigo, que caracteriza o poeta lírico, e está apto a criar poesia a-confessional e a-emocional. Superado o lirismo egotista, que guarda no bojo uma atitude feminina, pela passividade e depressão total revelada, o poeta atinge uma forma literária ativa, varonil, heróica, feita de alçar-se a altos planos de contemplação cósmica. É a poesia universalista. A perfeição do Cosmos interessa mais do que o mais sincero e profundo sentimento individualista. O mistério da harmonia universal, no jogode contrastes violentos, vale mais que os indescritíveis estados de sofrimento amoroso. A descoberta de escaninhos insondáveis, lá fora,na visão do firmamento e do Homem, importa mais que a confissão de estados líricos e sentimentais.

Resulta disso que, enquanto o lirismo, entendido como o temos feito até aqui, é atitude negadora, receptora e frágil diante da realidade, o épico é categoria própria do artista superior às contingências pessoais, que fazem o poeta pequeno e o homem pequeno. Explica-se: a tendência no sentido de anular os ímpetos egoístas brota do alargamento ilimitado do Eu, a ponto de se transformar em Nós. Com isso, o poeta aproxima-se dessa zona de verdades universais suficientemente fortes e significativas para lhe dar a sensação heróica da existência. O canto que nasce daí é muito dele, poeta, mas é também de toda a gente, não pelo aligeiramento e superficialidade, como no caso da poesia lírica, mas pela profunda universalidade decorrente. O Eu, transfigurado, transbordado, exprime imensos apelos e dores (o ser e o não-ser, o destino do homem à face da terra, a morte, a permanência além-túmulo, etc.).

Entenda-se, porém, que esse universalismo pode ser de dois tipos:

a) universalismo individualista — é o que resulta do encontro das universais e perenes inquietudes do Homem, através da sondagem frenética do próprio Eu; neste estaria difundido todo um mundo de aderências vitais (as vivências) acumuladas ao longo dos séculos, um como subconsciente coletivo, de forma que, no fundo, bem no fundo de todos os indivíduos, houvesse lembranças atávicas fortemente arraigadas e prontas para vir à luz, e fazer do homem-indivíduo um ser igual a toda a Humanidade, antes dele, depois dele, durante êle; em suma: o Eu é uma síntese do todo; 

b) universalismo universalista — é aquele em que o poeta se dirige, integralmente, no sentido de captar as grandes e perenes angústias do Homem: Deus, o destino histórico e transitório, a inevitabilidade da morte, o ser e o não-ser, etc.; procura, pois, sondar o conjunto de inquietações universais fora do Eu (embora, por vezes, nele identificadas), alcançadas pela indagação acerca dos mistérios impenetráveis da existência.

As duas formas de universalismo — apesar de convergentes, senão univalentes, pois acabam sendo problemas postos numa mesma equação inicialmente, já que se trata de Arte —, contêm movimentos da sensibilidade em sentido inverso: na primeira, o poeta volta-se para dentro de si, na auto-escavação do Eu, em gesto de caramujo; na segunda, o poeta projeta-se para fora, no encalço dos grandes planos e problemas. O resultado, porém, será o mesmo ou aproximado.

É esse universalismo, característico de épico, que aproxima o grande poeta do grande pintor ou musicista. Empoucas palavras, dir-se-ia que se identificam pela igual sensação de participarem com o Eu, aberto até o limite máximo, na ordem cósmica, em suas mais gigantescas expressões. É como se existisse, no âmago dos grandes fenômenos da natureza e no íntimo das obras de arte superior a mesma força, o alto e colossal impulso para o alto, em forma de ansiosa projeção no sentido dos insondáveis mistérios cósmicos, muito acima do espanto individual e superior às inteligências individuais. Como se a natureza, enquanto conjunto das coisas e seres que a mão do homem não transformou, fosse o espelho em que a Arte se mirasse para traduzir o ansioso e eterno apelo do Homem em face do Mistério.

Desse modo, a obra de Van Gogh, Wagner, Cervantes tem uma constante de grandeza humana e estética superior a qualquer contingência de tempo, lugar, língua, processo artístico, etc. Pouco importa se foi o som, a côr ou a palavra, o meio expressivo. Pouco importa se a obra de um é paisagem, doutro, ópera, e do terceiro, novela. O que vale, o que interessa é que as três obras estão aglutinadas por igual sentimento de grandioso, como se fossem outros grandes fenômenos da natureza, acompanhando a perpétua e harmônica mobilidade cósmica, num uníssono que faz parar a respiração e dá o sentimento da beleza que não morre. É como se por elas, o Homem colaborasse na obra da natureza, acrescentando-lhe situações que ela não pode oferecer como tal, mas pode condicionar e estimular. A grande obra, assim, faz regressar para o lugar donde veio o talento recebido involuntariamente. E a ordem cósmica readquire o equilíbrio. É por isso que contemplar tais obras é contemplar o plano espiritual, estético, acima do relativo que é a vida de cada um. E penetrar numa zona de belezas eternas. Ora, o cume dessa grandeza artística só pode ser representado pelo épico, o aflitivo desejo de elevar-se acima da condição humana, da constrangida e constrangedora consciência que o homem tem diante do desconhecido e do insondável.

A fim de clarificar e ilustrar esta observação, apanhe-se um grande poeta e coloque-se frente a Casimiro de Abreu, que escolhemos como exemplo de lírico. Podia-se buscar Cruz e Sousa. Os dois poetas conferem ao Eu especial importância. Mas o poeta catarinense transcende-o angustiosamente e procura aderi-lo a todas as realidades em maiúscula que sua intuição desvenda com espanto confessado. Gera-se nele, por causa disso, um torturado movimento pendular entre a ânsia de aderir ao que vai fora de si, como grandeza maior e superior a qualquer cálculo humano, e o assombro por alcançar percebê-lo. A poesia cálculo que resulta é uma força supra-lírica, supra-confessional que destrói a mínima sombra de egoísmo ou de empequenecedor individualismo lírico. Claro, tudo isso não impede que estejamos em face dum caso e duma equação humana e estética integralmente pessoais e irrepetíveis. Nele,a poesia, verruma analítica a sondar as profundezas abissais da alma, transforma-se em lancinante grito para todas as direções, revolta dum mundo interior maior que as medidas do pobre organismo humano, contensão, vibração ao último estágio das fibras estendidas ao máximo. Tudo, enfim, a retratar um sentimento profundo e perene, de que o homem não toma consciência, e de que o grande artista faz Arte. E tudo isso é, em suma, característica da poesia épica.

Entende-se, portanto, que o grande poeta, o poeta privilegiado “procure”, voluntária ou involuntariamente, realizar um tipo de poesia que é, ao fim de contas e em essência, épica. Entende-se, também, que não é necessário ser poema épico ou epopéia o meio expressivo. Pode ser e pode não ser. Assim é desde os antigos até os modernos: os poetas de maior força dramática são épicos, como se pode ver desde Virgílio, passando por Dante, Goethe, Camões, Villon, Baudelaire, até chegar a Fernando Pessoa e Valery.

Por quê? Por que Poetas tão díspares na aparência podem classificar-se juntos? Façamos abstração das semelhanças e dissemelhanças formais entre eles,pois trata-se dum aspecto menos importante. Interessa mais de perto sua essência poética. E, nela, que é que vemos?

Todos estão identificados pela mesma ânsia, a angústia em face do Cosmos e do Homem, cujas contribuições, contrastes e mistérios pretendem entender, antes de tudo, e reduzir a uma síntese tão perfeita quanto é possível. Em suma: a Poesia, colocada em seu mais alto grau, a de anunciadora, reveladora e condutora, acaba sendo o veículo expressivo duma concepção global do Universo e do Homem. Ora, idêntico objetivo tem pela frente a Filosofia, o que torna a Poesia sua irmã, única, pode-se dizer, pois nenhuma forma de conhecimento, salvo a Teologia, possui igual objetivo. 

A obra desses Poetas não é ato meramente estético, se dermos ao adjetivo “estético” um sentido restrito e corriqueiro, ligado à Beleza. É, sim, ato doloroso, mortificante, que vem de intuir, consciencializar, os grandes mistérios ao redor, e saber que a vida é breve, frágil e mesquinha diante deles. Ao mesmo tempo nasce o ansiado, o sufocado desejo de emigrar no encalço das altas verdades situadas para além do plano em que vive o homem, mergulhado numa atmosfera sensual de apetites primários, satisfeitos ou a exigir satisfação. Viagem, afinal, para o plano metafísico, plano esse que os torna grandes, acima da média comum. E enforma-lhes aquele modo de captar a máquina do mundo duma forma singular, que escapa ao homem destituído de tais dons, mas de que não pode prescindir, caso pretenda a lucidez que dignifica a existência e abre caminhos para a plena realização vital.

Nesses Poetas o esforço angustiado de elevar-se do solo, leva à Obra em que está subentendido, pelo menos, um sistema poético-filosófico de compreensão da harmoniosa máquina do mundo. Sua ânsia de conhecer os grandes mistérios traduz-se na obra em que se plasma o modo pessoalíssimo de ver e compreender o Homem e as coisas. Tudo isso é, está-se a ver, a categoria do poeta épico, jamais do lírico.

Vem daí que, apenas como simples exemplo, Camões se aparenta mais de Fernando Pessoa que dos poetas imitadores. É que, incapazes totalmente de o imitar por dentro, enquanto núcleo poético, resolveram imitá-lo por fora, nos recursos formais. Os seguidores de Camões, em que categoria se colocam, portanto? Embora tenham o desejo de, a vontade, a pretensão de fazer poesia épica, apenas ficaram, artificialmente, no primeiro estágio, a imitação servil e estilística. São epicizantes, pois, à falta doutro termo mais apropriado. Querem ser, mas não são. Desse modo, ninguém confundiria Camões com Bento Teixeira, nem Baudelaire com Verlaine. E desse modo, o poeta lírico se aproxima do epicizante, em matéria de profundidade e altitude da inspiração, e do descortínio intelectual e sensível. Enquanto ambos, ou se deixam levar pela emoção pura e simples (o lírico), ou pela artificialidade calculada e pretensiosa (o epicizante), o épico alia inteligência e sensibilidade em graus maiores. O épico sente e pensa o que sente, ou sente-pensando, como diz Fernando Pessoa (“O que em mim sente ‘sta pensando”), ou pensa-sentindo. O lírico sente; o epicizante não sente, pensa. O épico põe o trabalho de burilar como exigência de perfeição imposta pelas grandes intuições que possui; o lírico deixa-se levar pelos jactos de impulsividade, e cria com “ardor”, frenesi; o epicizante burila, sem nada ter que burilar, pois só tem palavras, sem conteúdo.

Da mesma forma, a poesia satírica (feita para atacar, zombar, moralizar, criticar, ridicularizar) está em posição inferior. Aproxima-se da lírica pelo impulsivo movimento da sensibilidade que lhe dá força, e da epicizante na medida em que a forma eloqüente agasalha o conteúdo pobre e efêmero. Com efeito, a poesia satírica, baseando-se, como sempre, em algum fato, acontecimento circunstancial, de momento, tende a desaparecer completamente com o motivo inspirador. Só muito raro é o poeta satírico marcado pelo signo da permanência e universalidade, como Aristófanes, mas por razões que sobrelevam as características da sátira.

A fim de tornar mais claras as distinções aqui estabelecidas, e dar idéia de seu alcance, parece-me de todo necessário dar um exemplo de poesia lírica seguido de poesia épica.

Inicialmente, um poema tipicamente lírico:

AMOR E MEDO
I

Quando eu te fujo e me desvio cauto
Da luz de fogo que te cerca, ó bela,
Contigo dizes, suspirando amores:
“— Meus Deus! que gelo, que frieza aquela”!

Como te enganas! meu amor é chama
Que se alimenta no voraz segredo,
E se te fujo é que te adoro louco…
És bela — eu moço; tens amor — eu medo!.

Tenho medo de mim, de ti, de tudo,
Da luz, da sombra, do silêncio ou vozes
Das folhas secas, do chorar das fontes,
Das horas longas a correr velozes.

O véu da noite me atormenta em dores,
A luz da aurora me entumesce os seios,
E ao vento fresco do cair das tardes
Eu me estremeço de cruéis receios.

É que esse vento que na várzea — ao longe,
Do colmo o fumo caprichoso ondeia,
Soprando um dia tornaria incêndio
A chama viva que teu riso ateia!

Ai! se abrasado crepitasse o cedro
Cedendo ao raio que a tormenta envia,
Diz: — que seria da plantinha humilde
Que à sombra dele tão feliz crescia?

A labareda que se enrosca ao tronco
Torrara a planta qual queimara o galho,
E a pobre nunca reviver pudera,
Chovesse embora paternal orvalho!

II

Ai! se eu te visse no calor da sesta,
A mão tremente no calor das tuas,
Amarrotado o teu vestido branco,
Soltos cabelos nas espáduas nuas!…

Ai!, se eu te visse, Madalena pura,
Sobre o veludo reclinada a meio,
Olhos cerrados na volúpia doce,
Os braços frouxos, — palpitando o seio! . . .

Ai! se eu te visse em languidez sublime,
Na face as rosas virginais do pejo
Trêmula a fala a protestar baixinho…
Vermelha a boca soluçando um beijo!…

Diz: — que seria da pureza de anjo,
Das vestes alvas, do candor das asas?
— Tu te queimaras, a pisar descalça
— Criança louca, — sobre um chão de brasas!

No fogo vivo eu me abrasara inteiro!
Ébrio e sedento na fugaz vertigem,
Vil, machucara com meu dedo impuro
As pobres flores da grinalda virgem!

Vampiro infame, eu sorveria em beijos
Toda a inocência que teu lábio encerra,
E tu serias no lascivo abraço
Anjo enlodado nos pauis da terra.

Depois . . . desperta no febril delírio,
— Olhos pisados, como em vão lamento,
Tu perguntaras: “Qu’é da minha c’roa”?…
Eu te diria: “Desfolhou-a o vento”!…

Oh! não me chames coração de gelo!
Bem vês: traí-me no fatal segredo.
Se de ti fujo é que te adoro e muito:
És bela — eu moço; tens amor — eu medo!…

Casimiro de Abreu

Tirante vários aspectos e ângulos merecedores de análise, mas que não cabe fazer neste momento, observem-se algumas características próprias da poesia lírica, especialmente da romântica: a irrealidade, que se traduz no acentuado teatralismo da cena, como se o poeta estivesse num palco ou numa tribuna política; a falsidade hipócrita da confissão, que cala o mais importante do sentimento; a egolatria geral, que reduz ao diálogo (ou, mais precisamente, ao monólogo) tudo quanto é mistério e “grande” na contemplação conflituosa e problemática do mundo; o “amorismo”, que convence às duas partes do diálogo, sobretudo ao poeta, ser o amor a única e exclusiva razão de seus cuidados e existência; sejuntarmos o caráter “artístico”, no sentido de “afetado”, posudo, parece-me clara a natureza lírica, e, portanto, limitada destepoema. A bem da verdade, diga-se que se trata dum lírico menor e apegado estritamente à estética romântica. Noutro poeta fora do enquadramento cultural de Casimiro de Abreu, as coisas seriam algo diferentes. A base, contudo, suficiente para os agrupar sob o mesmo rótulo, é idêntica.

É o caso, por exemplo, do episódio lírico de Uraguai, poema epicizante de José Basílio da Gama:

(Morte de Lindóia)

Este lugar delicioso e triste,
Cansado de viver, tinha escolhido
Para morrer a mísera Lindóia.
Lá reclinada, como que dormia,
Na branda relva e nas mimosas flores,
Tinha a face na mão e a mão no tronco
De um fúnebre cipreste, que espalhava
Melancólica, sombra. Mais de perto
Descobrem que se enrola no seu corpo
Verde serpente, e lhe passeia, e cinge
Pescoço e braços, e lhe lambe o seio.
Fogem de a ver assim sobressaltados,
E param cheios de temor ao longe;
E nem se atrevem a chamá-la, e temem
Que desperte assustada e irrite o monstro,
E fuja, e apresse no fugir a morte,
Porém o destro Caitutu, que treme
Do perigo da irmã, sem mais demora
Dobrou as pontas do arco e quis três vezes
Soltar o tiro e vacilou três vezes
Entre a ira e o temor. Enfim sacode
O arco e faz voar a aguda seta,
Que toca o peito de Lindóia e fere
A serpente na testa, e a boca e os dentes
Deixou cravados no vizinho tronco.
Açouta o campo co’a ligeira cauda
O irado monstro e com tortuosos giros
Se enrosca no cipreste e verte envolto
Em negro sangue o lívido veneno.
Leva nos braços a infeliz Lindóia
O desgraçado irmão, que ao despertá-la
Conhece, com que dor! no frio rosto
Os sinais do veneno, e vê ferido
Pelo dente sutil o brando peito.
Os olhos, em que Amor reinava, um dia,
Cheios de morte; e muda aquela língua,
Que ao surdo vento e aos ecos tantas vezes
Contou a larga história de seus males.
Nos olhos Caitutu não sofre o pranto,
E rompe em profundíssimos suspiros,
Lendo na testa da fronteira gruta
De sua mão já trêmula gravado
O alheio crime e a voluntária morte.
E por todas as partes repetido
O suspirado nome de Cacambo.
Inda conserva o pálido semblante
Um não sei quê de magoado e triste,
Que os corações mais duros entristece.
Tanto era bela no seu rosto a morte!

José Basílio da Gama

Trecho poeticamente o mais importante do Poema, por sua unidade no jogo plástico das personagens, sentimentos e Natureza, ainda assim padece de limitações. Muito embora não seja o diálogo amoroso direto, e corresponda a uma “situação” dramática de grande efeito cênico, sente-se-lhe, a par da influência camoniana (episódio da morte de Inês de Castro), uma como impotência para transfundir o sentimento afetivo em algo mais elevado. Exceto os últimos versos, onde ressoa uma voz épica fadada a mais largos vôos e mais felizes realizações, o que mais comove, atinge o leitor, mas sem maiores conseqüências. Por pouco, o leitor se alheia do contexto, por ver-lhe na intimidade a arrumação teatral propositada. Acaba sendo falsa e muito particular, portanto inverossímil e incapaz de universalizar-se, a morte duma indígena naquelas condições. Ao mesmo tempo, a lembrança do modo como Cleopatra pôs fim à vida, de que a morte de Lindóia é pasticho, involuntário, talvez, — atenua de muito o alcance épico da cena.

Já agora, que falamos em épica e na morte de Inês de Castro, valia a pena comparar as duas personagens. Vejamos o episódio camoniano:

“Tu só, tu puro Amor, com força crua,
Que os corações, humanos tanto obriga,
Deste causa à molesta morte sua,
Como se fora pérfida inimiga.
Se dizem, fero Amor, que a sede tua
Nem com lágrimas tristes se mitiga,
É porque queres, áspero e tirano,
Tuas aras banhar em sangue humano.

Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruto.
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuto,
Aos montes ensinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.

Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam:
De noite em doces sonhos, que mentiam,
De dia em pensamentos, que voavam.
E quanto enfim cuidava, e quando via,
Eram tudo memórias de alegria.

De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados talamos enjeita,
Que tudo enfim, tu, puro amor, desprezas
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas
O velho pai sisudo, que respeita
O murmurar do povo, e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria.

Tirar Inês ao mundo determina.
Por lhe tirar o filho que tem preso,
Crendo co’ sangue só da morte indina
Matar do firme amor o fogo aceso.
Que furor consentiu que a espada fina,
Que pôde sustentar o grande peso
Do furor mauro, fosse alevantada
Contra uma fraca dama delicada?

Traziam-se os horríficos algozes
Ante o Rei, já movido a piedade:
Mas o povo, com falsas e ferozes
Razões, à morte crua o persuade.
Ela com tristes e piedosas vozes,
Saídas só da mágoa, e saudade
Do seu Príncipe, e filhos que deixava,
Que mais que a própria morte a magoava,

Para o céu cristalino alevantando
Com lágrimas os olhos piedosos,
Os olhos, porque as mãos lhe estava atando
Um dos duros ministros rigorosos;
E depois nos meninos atentando,
Que tão queridos tinha, e tão mimosos,
Cuja orfandade como mãe temia,
Para o avô cruel assi dizia:

Se já nas brutas feras, cuja mente
Natura fêz cruel de nascimento,
£ nas aves agrestes, que somente
Nas rapinas aéreas têm o intento
Com pequenas crianças viu a gente
Terem tão piedoso sentimento,
Como coa mãe de Nino já mostraram,
E cos irmãos que Roma edificaram;

Ó tu, que tens de humano o gesto e o peito
(Se de humano é matar uma donzela
Fraca e sem força, só por ter sujeito
O coração a quem soube vencê-la)
A estas criancinhas tem respeito,
Pois o não tens à morte escura dela;
Mova-te a piedade sua e minha,
Pois te não move a culpa que não tinha.

— E se, vencendo a maura resistência,
A morte sabes dar com fogo e ferro,
Sabe também dar vida com clemência
A quem para perdê-la não faz erro.
Mas se te assi merece esta inocência,
Põe-me em perpétuo e mísero desterro,
Na Cítia fria, ou lá na Líbia ardente,
Onde em lágrimas viva eternamente.

Põe-me onde se use toda a feridade,
Entre leões e tigres, e verei
Se neles achar posso a piedade
Que entre peitos humanos não achei:
Ali co amor intrínseco e vontade
Naquele por quem morro, criarei
Estas relíquias suas que aqui viste,
Que refrigério sejam da mãe triste.

Queria perdoar-lhe o Rei benino,
Movido das palavras que o magoam;
Mas o pertinaz povo, e seu destino
(Que desta sorte o quis) lhe não perdoam.
Arrancam das espadas de aço fino
Os que por bom tal feito ali apregoam.
Contra uma dama, ó peitos carniceiros,
Feros vos amostrais, e cavaleiros?

Qual contra a linda moça Policena,
Consolação extrema da mãe velha,
Porque a sombra de Aquiles a condena,
Co ferro o duro Pirro se aparelha;
Mas ela os olhos com que o ar serena
(Bem como paciente e mansa ovelha)
Na mísera mãe postos, que endoudece,
Ao duro sacrifício se oferece:

Tais contra Inês os brutos matadores
No colo de alabastro, que sustinha
As obras com que Amor matou de amores
Aquele que depois a fêz Rainha;
As espadas banhando, e as brancas flores,
Que ela dos olhos seus regadas tinha,
Se encarniçavam, férvidos e irosos,
No futuro castigo não cuidosos.

Bem puderas, ó Sol, da vista destes
Teus raios apartar aquele dia,
Como da seva mesa de Tiestes,
Quando os filhos por mão de, Atreu comia.
Vós, ó côncavos vales, que pudestes
A voz extrema ouvir da boca fria,
O nome de seu Pedro, que lhe enviastes,
Por muito grande espaço repetistes!

Assi como a bonina, que cortada
Antes do tempo foi, cândida e bela,
Sendo das mãos lascivas maltratada
Da menina que a trouxe na capela,
O cheiro traz perdido e a côr murchada:
Tal está morta a pálida donzela,
Secas do rosto as rosas, e perdida
A branca e viva côr, coa doce vida.

As filhas do Mondego a morte escura
Longo tempo chorando memoraram,
E, por memória eterna, em fonte pura
As lágrimas choradas transformaram;
O nome lhe puseram, que inda dura,
Dos amores de Inês que ali passaram.
Que lágrimas são a água, e o nome amores”.

Camões

Os versos falam por si. Mas não é demasiado acentuar-lhes alguns traços. O tom, agora, é de elevação, até de altivez perante o destino ingrato. Em momento nenhum, o sentimento comovente que corre ao longo do episódio — dirigido aos filhos e ao amante — ganha foros de falso ou artificial. Ao contrário, sua grandeza ultrapassa o plano das palavras em cena, para ser universal e permanente. Estampa-se, aqui, o sofrimento amoroso, mesclado de indignação moral e sobrançaria perante o infortúnio; no trecho de Lindóia, põe-se umsentimento de afeto por um homem. Uma, Inês, é arrastada à morte, mas vai com a cabeça erguida e os sentimentos elevados, jamais caindo na súplica ou no pieguismo; outra, Lindóia, escorrega para o suicídio e tem como problema sentimental a morte do bem amado e o possível aprisionamento por parte dos jesuítas. Uma enfrenta a morte epicamente, e refletindo a cosmovisão humanitarista de Camões, a outra, deprime-se até buscar pelas próprias mãos a morte indigna que não pretende receber do inimigo, refletindo, assi, uma visão pequena do Homem e do Destino. Numa o sopro épico, trágico, na outra, o ensimesmamento e o lirismo descritivo.

E, para terminar estas considerações acerca do épico e do lírico transcrevo “A Máquina do Mundo”, de Carlos Drummond de Andrade:

E como eu palmilhasse vagamente
uma estrada de Minas, pedregosa,
e no fecho da tarde um sino rouco

se misturasse ao som de meus sapatos
que era pausado e seco; e aves pairassem
no céu de chumbo, e suas formas pretas

lentamente se fossem diluindo
na escuridão maior, vinda dos montes
e de meu próprio ser desenganado,

a máquina do mundo se entreabriu
para quem de a romper já se esquivava
e só de o ter pensado se carpia.

Abriu-se majestosa e circunspecta,
sem emitir um som que fosse impuro
nem um clarão maior que o tolerável

pelas pupilas gastas na inspecção
continua e dolorosa do deserto,
e pela mente exausta de mentar

toda uma realidade que transcende
a própra imagem sua debuxada
no rosto do mistério, nos abismos.

Abriu-se em calma pura, e convidando
quantos sentidos e intuições restavam
a quem de os ter usado os já perdera

e nem desejaria recobrá-los
se em vão e para sempre repetimos
os mesmos sem roteiro tristes périplos,

convidando-os a todos, em coorte,
a se aplicarem sobre o pasto inédito
da natureza mítica das coisas,

assim me disse, embora voz alguma
ou sopro eu eco ou simples percussão
atestasse que alguém, sobre a montanha,

a outro alguém, noturno e miserável,
em colóquio se estava dirigindo:
“O que procuraste em ti ou fora de

teu ser restrito e nunca se mostrou,
mesmo afetando dar-se ou se rendendo,
e a cada instante mais se retraindo,

olha, repara, ausculta: essa riqueza
sobrante a toda pérola, essa ciência
sublime e formidável, mas hermética,

essa total explicação da vida,
esse nexo primeiro e singular,
que nem concebes mais, pois tão esquivo

se revelou ante a pesquisa ardente
em que te consumiste… vê, contempla,
abre teu peito para agasalhá-lo”.

As mais soberbas pontes e edifícios,
o que nas oficinas se elabora,
o que pensando foi e logo atinge

distância superior ao pensamento,
os recursos da terra dominados,
e as paixões e os impulsos e os tormentos

e tudo que define o ser terrestre
ou se prolonga até nos animais
e chega às plantas para se embeber

no sono rancorosos dos minérios,
dá volta ao mundo e torna a se engolfar
na estranha ordem geométrica de tudo,

e o absurdo original e seus enigmas,
suas verdades altas mais que todos
monumentos erguidos à verdade;

e a memória dos deuses, e o solene
sentimento de morte, que floresce
no caule da existência mais gloriosa,

tudo se apresentou nesse relance
e me chamou para seu reino augusto,
afinal submetido à vista humana.

Mas, como eu relutasse em responder
a tal apelo assim maravilhoso,
pois a fé e abrandara, e mesmo o anseio,

a esperança mais mínima — esse anelo
de ver desvanecida a treva espessa
que entre os raios de sol inda se filtra;

come defuntas crenças convocadas
presto e fremente não se produzissem
a de novo tingir a neutra face

que vou pelos caminhos demonstrando,
e como se outro ser, não mais aquele
habitante de mim há tantos anos,

passasse a comandar minha vontade
que, já de si volúvel, se cerrava
semelhante a essas flores reticentes

em si mesmas abertas e fechadas;
como se um dom tardio já não fora
apetecível, antes despiciendo,

baixei os olhos, incuriosos, lasso,
desdenhando colher a coisa oferta
que se abria gratuita a meu engenho.

A treva mais estrita já pousara
sobre a estrada de Minas, pedregosa,
e a máquina do mundo, repelida,

se foi miudamente recompondo,
enquanto eu, avaliando o que perdera,
seguia vagoroso, de mãos pensas.

Carlos Drummond de Andrade

Não é preciso muito esforço para apreender, neste poema, o seu conteúdo nitidamente épico. O poeta, ou o confidente, porque duma alta confidencia se trata, despoja-se do ego sentimental, afetivo e acomodado, para faze-lo órgão contemplador da “máquina do mundo”. Um vasto palco se lhe abre à frente, oferecendo-lhe uma dimensão cósmica para além de qualquer introversão lírica, ou auto-apreciação diante do espelho. O diálogo não é mais amoroso, nem é mais com um semelhante; seria, se possível encontrá-lo, com o outro, ou, melhor ainda, com o estranho planeta em que habitamos, e de onde se descortina um panorama estelar de incríveis proporções. O sopro inteiro do Poema transcende à confissão do drama pequeno, aquele nascido do conflito amoroso, para ser o retrato do pasmo grandioso experimentado por todos quantos alguma vez se perscrutaram em profundidade abissal ou se voltaram para a “máquina do mundo”. E o momento fugaz em que se entremostrou ao caminhante mineiro a formidanda paisagem universal foi o suficiente para lhe fazer sentir a presença de algo transcendental e misterioso, fora do seu alcance, intelectual e sensível. O anseio, porém, de abarcar com os cursos particulares todo um complexo e complicado sistema oferecido à mente, ou dela oriundo para dar ordem ao mundo, é duma epicidade que prescinde de outro qualquer adjetivo para se impor ao exame do leitor atento. E aqui, da mesma maneira que Os Lusíadas, mas em proporção física menor (isto é: número de versos e estrofes), oferece-se uma tentativa de reunir os dados contraditórios capazes de fornecer a unidade subjacente à diversidade dos elementos da Natureza, enfim, tudo quanto, idéia, sensação, pensamento ou mito, que forma o mundo ao nosso redor, e dentro do qual nos colocamos como sob uma concha. Num caso e noutro, o sentimento é épico, não obstante todas as diferenças, extrínsecas, de resto, que puderem ser juntadas.

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Publicado por Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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