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Apresentação: Dos filósofos alguns há que têm o olhar raso, laminador, e tentam reduzir tudo a simples superfície, às dimensões estritas por eles consideradas admissíveis. O que não se ajusta nem cabe na sua arbitrária fórmula do real pressupõe-se, por uma espécie de dictatus voluntarista, que não existe, que não tem relevância, que é fictício, espúrio ou sem valor. Pretendem ser exactos, mas é provável que, com frequência, apenas se lhes obscureça e escape a densidade, a riqueza, a convolução misteriosa do universo físico ou humano nos seus pressupostos mais fundos e nos seus acenos mais discretos e insinuantes.
Outros, pelo contrário, aprontam olhos para os matizes, não só para os âmagos de luz, mas também para os espaços de sombra, para recantos só adumbrados e nunca passíveis de uma elucidação plena; mais atentos, portanto, às múltiplas fímbrias das coisas, à circulação e ao fervilhar relacional da ordem dos seres que suscita vibrações ou entidades emergentes, insusceptíveis de uma elucidação meramente física ou outra, exigindo antes uma panóplia de instrumentos de análise e um feixe miscigenado de vários tipos de discurso.
Uns são, porventura, mais sensíveis às linhas claras, aparentemente controláveis, e exercitam-se, até à monomania, no hábil corte da navalha de Ockham — entia non sunt multiplicanda sine necessitate [1] — mas, por temor do devaneio de admitir entidades ilusórias, expõem-se ao perigo de se converterem, frente ao corpo vivo da realidade, em talhantes cognitivos, de lidarem com disjecta membra [2] ou fragmentos desconexos, que eles confundem ou se inclinam a identificar com o todo.
Outros, mais atentos à música plural e inédita do “todo”, sem negar o rifão ockhamiano, retocam-no num segundo momento — entia non sunt minuenda sine necessitate [3] —, ou seja, nada há que roubar ao enigma ou ao segredo das coisas, precisamente porque a realidade se revela mais inteligente, mais densa, mais povoada, do que a apreensão que dela tentamos obter. Reconhecem assim aquilo que o grande poeta Gerard Manley Hopkins recordava: mind has mountains; cliffs of fall / Frightful, sheer, no-man-fathomed (“montanhas tem a mente; escarpas abertas à queda, / temíveis, não sondadas pelo homem”).
* * *
Maria Zambrano integra-se, como é bem de ver, neste segundo grupo. A influência de J. Ortega y Gasset, além de a levar a elaborar a distinção entre ideias e crenças, reforçou nela a atenção a um substrato da vida humana mais profundo do que o nó de crenças em que ela se encontra enredada: a esperança. Compreende-se, pois, o seu apreço pelo tema da filosofia e da poesia — objecto do presente ensaio — nos seus contrastes e nas suas afinidades; e também o cuidado e a simpatia com que examina o sagrado, numa perspectiva metafísica, como uma realidade temerosa que, ao mesmo tempo, inibe o ser humano, mas também o sustenta e apoia.
Por outro lado, a sua obsessão perpétua com o “saber da alma” levou-a a ver na filosofia, não uma prática de resolução de problemas técnicos, mas um acontecimento radical da vida, sempre aquém da abertura e da promessa da esperança. Por isso mesmo, esta encontra-se em nós sempre mesclada com o sentimento de desespero, com a sensação de indisponibilidade e de não domínio do real ou da vida; e os temas da filosofia, mais do que problemas, inserem-se na zona cerrada e vertiginosa do mistério.
Não surpreende, portanto, que o motivo do “coração” — tema que foi morrendo na filosofia, com a consequente adiaforização ou indiferenciação dos valores — ocupe no pensamento da escritora um lugar de relevo.
No ensaio “A metáfora do coração” lembra ela o seguinte: a razão, que é “pura manifestação”, luz intelectual, longe de esgotar a realidade e de a ela ser coextensiva em termos de apreensão, tem de se conjugar com as ‘metáforas’ para aceder a níveis ontológicos que requerem outros modos de conhecimento. Há fendas ou brechas no nosso ser e nos movimentos do mundo, para as quais só o coração tem salvo-conduto ou livre entrada, quando a tal se dispõe, precisamente o mesmo coração que tem feridas, que nos pesa, que é “interioridade aberta” e “passividade activa”, que é “sede de intimidade”, pulsação e frémito. Não busca ele, de facto, estruturas ou mecanismos de dominação, mas a comunhão e a sintonia com a ordem dinâmica do ser e do cosmos. Tem o seu saber específico, que não é de estados confusos, mas uma visão de segundo nível, que implica o empenhamento, a entrega, o assombro, o temor e a confiança; tem o seu “ordo amoris” (na linha de Agostinho e de Max Scheler) e vive de preferências, escancara-se à corrente da vida, às suas advertências, aos seus acasos criadores; escuta e capta a anuência ao ser que habita as coisas, o seu conatus ou o seu nisus de perseverar no seu caminho peculiar, conjuga-se com o saber da “alma” que busca o horizonte que nos acolhe e rodeia ou abarca todos os outros horizontes mais restritos da nossa acção.
Típico da filosofia moderna foi que, ao falar cada vez mais do entendimento (Leibniz, Hume, Locke e Kant, por ex.), reduziu também cada vez mais ao silêncio o “coração”, o órgão da comunhão com a totalidade e a comunidade dos seres, o sismógrafo da captagem da magnificência da vida no seu esplendor, na sua treva, no seu trágico e também na sua comédia. Dilatou-se, por conseguinte, a separação com o mundo, alargou-se a distância dos homens em relação ao resto do universo, tornou-se sempre mais opaca a “alma”, ou seja, aplanaram-se as “montanhas” da mente e a indiferença ontológica tornou cada vez mais vesgo o nosso olhar. Por fim, obtuso e rompante, implantou-se um “naturalismo” insulso e agressivo, pobre bastão para espíritos claudicantes e autistas que, no culto de uma racionalidade eviscerada das suas raízes cordiais, puramente objectivante e manipuladora, se nega a si mesma e se priva dos seus próprios fundamentos.
Eis porque é salutar ouvir a voz de Maria Zambrano e a sua insistência no coração, seguir o seu conselho: “Viver fora de si, por estar mais além de si mesmo. Viver disposto para o voo, pronto para qualquer partida. É o futuro inimaginável, o inalcançável futuro dessa promessa de vida verdadeira que o amor insinua em quem o sente. O futuro que inspira, que consola do presente, fazendo não acreditar nele, de onde brota a criação, o não previsto: o que atrai o devir da história que corre em sua busca. O que não conhecemos e nos chama a conhecer. Esse fogo sem fim que respira no segredo de toda a vida”.
(Cfr. “Dois fragmentos sobre o amor”, in M. ZAMBRANO, A Metáfora do Coração e outros escritos, trad. de José Bento, Lisboa, Assírio e Alvim, 20002, p. 58)
Artur Morão
Poesia e Metafísica — Maria Zambrano*
(1939)
Pareceria natural que, após a reconciliação entre pensamento e poesia, operada sob o céu das ideias platónicas, pensamento e poesia não voltassem já a ser irreconciliáveis. Assim teria sido se não houvesse no mundo outro pensamento senão a filosofia platónica. Mas depois, muito depois de Platão ter pedido o poder para o pensamento filosófico, outros se ergueram em busca do mesmo, mas com desígnios muito diferentes.
Porque vimos que Platão, que desprezou a poesia, que erigiu num império mais alto a razão, estava possuído por um desígnio mais generoso e universal, mais verdadeiramente amante da unidade, que o que, à primeira vista, encontramos na sua condenação da poesia. Por isso, não lhe bastou a filosofia e teve que fazer teologia e que descobrir, fortalecendo-a, fundamentando-a, certa mística. Mas nem todos os filósofos procederam levados por ânsias iguais. Muito mais tarde, na vida dessa parte do mundo chamada Europa, e no momento histórico chamado Época Moderna, a filosofia voltou a nascer pela segunda vez, renasceu, e com isso as suas pretensões imperiais foram apresentadas de novo, mas de maneira diferente.
A primeira esperança ficara fundada. A Idade Média e o Renascimento recolheram esta herança platónico-cristã, e era tal a sua firmeza que até dentro do ascetismo se abrira um lugar para o prazer. Como já vimos, algo se salvara do ascetismo, não pelo lado cristão, mas pela via platónica: era precisamente o amor. E a sua riqueza é tanta, tão profunda a sua fecundidade, que chega até à arte, às artes plásticas, mais afastadas ainda, mais “irracionais” que a arte da palavra. Até a pintura se enche de “logos”, penetra-se de ideia e de sentido. Leonardo da Vinci é o pintor platónico em quem culmina a tradição preciosíssima do chamado cuattrocento italiano. As virgens de Fra Angélico e Filippo Lippi, as deusas pagãs de Botticelli e de Giorgione, são platónicas também, como o serão as virgens de Rafael, talvez o último pintor platónico [4].
Mas o homem nunca fica satisfeito, e quando consegue a reconciliação entre dois princípios que apareciam como irreconciliáveis, exige outro, ou, melhor, de um deles ergue-se a sua continuidade, levantando de novo a luta. O homem não pode navegar na unidade, e quando a alcança — nunca por completo —, destrói-a para voltar de novo a procurá-la. Precisa da unidade como meta, como horizonte, e não pode saboreá-la quando, por fim, se lhe apresenta como um fruto maduro.
A esperança que no mundo grego aparece, a esperança de que o homem tivesse por fim, ser, ser perante o ir e vir da natureza, ser também dentro do seu próprio torvelinho, ficara, na verdade, assegurada pelo duplo caminho da filosofia e da religião cristã. Filosofia e religião tinham-se unido tão estreitamente desde os primeiros momentos, que bem às claras se mostrava que a batalha que estavam as duas a travar era, em grande parte, coincidente. Tão coincidente, que a religião renunciava, de momento, a algo que tinha de privativo e muito peculiar frente à filosofia, para que esta a seguisse. E assim foi, e assim se cumpriu perfeitamente com uma perfeição poucas vezes conseguida em assuntos humanos.
A poesia foi manifestação e, ao mesmo tempo, instrumento desta unidade no combate. Ela também uniu a sua voz à batalha contra as sombras. A Divina Comédia realiza esse momento feliz, talvez não repetido, de uma união sem vagas e nebulosas identificações entre poesia, religião e filosofia. E coube-lhe, como era de regra para a poesia, o mitificar, o materializar a esperança que entre a filosofia e a religião tinham assegurado.
Outro momento de unidade profunda entre as três coisas verifica-se, como acabamos de ver, pelo caminho da mística. Por isto — é preciso, pelo menos, deixá-lo agora apontado — comporta um problema à parte: a questão um tanto grave [5] de que toda a poesia seja, em último termo, mística, ou que a mística seja na sua raiz poesia; uma forma de religião poética ou religião da poesia. Não nos vamos deter nisso neste momento.
Mas as tréguas foram curtas; o instante de paz, breve. Depressa, bem depressa, começou a deixar-se ouvir a nova esperança, começou a abrir passagem manifestando-se de tantas maneiras quantas podia. A nova esperança era, nada menos, que este mundo. Este mundo; ter neste mundo tudo o que se esperara do outro. Gozar para cá do tempo do que somente a condição de atravessar o umbral da morte nos prometera com tanta razão. Isto é, saltar o longo caminho da ascese. A nova esperança não se encerra dentro do ascetismo; quer tudo, sem ter que renunciar, entretanto, a nada.
Quer tudo, mas quer algo de uma maneira mais determinada, e é a individualidade. A verdade é que a esperança primeira se dirigira especialmente ao ser, ao ser das coisas, e em seguida ao ser do próprio homem. Mas este ser, este ser inteiro do homem, somente mais além da morte — pela contemplação, diz Platão; pela redenção, diz o cristianismo, se podia achar. Mas agora o acento vai cair sobre o ser conseguido neste mundo, para cá da morte. E em seguida, e em outro momento, no próprio ser; no ser individual.
A filosofia vai instalar-se no orbe da criação. A religião, por fim, não podia continuar por mais tempo a ocultar as suas verdades. Já a batalha tida em comum juntamente com a filosofia fora ganha. Agora cada uma vai formular as suas novas exigências que, curiosamente, se vão transfundir. Do cristianismo, um mistério, o da criação — vontade e liberdade divinas, infinitas — vai antecipar-se como tema central, obsessivo. E do lado da filosofia, a existência humana, e em seguida a existência humana individual, vai procurar abrir passagem como fundamento de toda a realidade.
E como cristianismo e filosofia estavam inexoravelmente enlaçados, os seus fortes anseios transfundem-se. A criação divina, vontade e liberdade, é o que vai estar no fundo disso a que se chamou Metafísica. Está no fundo primeiramente, mas não demorará muito a vir à superfície, manifestando-se plenamente: desde Kant (o Kant da Razão Prática), Fichte, Schelling, até Hegel, em quem o profundo anseio religioso alcança educação exacta com a razão. Em Hegel, a razão, no outro extremo de Platão, faz também teologia. Talvez não seja arriscado chamar Metafísica da Criação a este período do pensamento filosófico.
Na ordem do conhecimento quer-se encontrar a fundamentação da ciência, isto é, do conhecimento que já se possui, mas que, pelo visto, não basta possuí-lo se não se possui desde a sua última raiz. Trata-se, realmente, de um conhecimento ambicioso. Pois, na realidade, chegar à fundamentação do conhecimento é tanto como saber das coisas o que se saberia se nós as tivéssemos criado. E conhecer desde a própria raiz do ser E conhecer absolutamente.
Mas tal conhecimento supõe que o homem mesmo fique situado em último termo, como fundamento do ser das coisas. O homem é o sujeito de um conhecimento fundamentador. Tinha que chegar-se daqui forçosamente à autonomia da consciência de Kant, pois que ao próprio homem, — quem o há-de determinar, onde achar o seu fundamento? O ser já não está aí como nos tempos da Grécia, nem como na Idade Média, como algo em que o meu ser, o meu próprio ser, está sustentado, embora de maneira diferente das demais coisas próprias do ser. Já o ser não é independente de mim, pois que, em rigor, só em mim mesmo o encontro, e as coisas fundamentam-se em algo que eu possuo. Só a pessoa humana ficará isenta, livre, fundando-se a si mesma.
Autonomia da pessoa humana. Na verdade, anteriormente só alguém gozara de determinar-se a si mesmo: a própria divindade. Agora sim, realmente, já era o homem à imagem e semelhança de Deus, mas tão semelhante que, em verdade, já não era imagem, isto é, reflexo ou cintilação, mas como antes se concebera Deus: livre e criador: Criador.
Este era, parece, o programa do pensamento; programa francamente religioso. A razão caminhava pelo álveo de uma desmedida ambição religiosa. O homem queria ser. Ser criador e livre. E, em seguida, ser único. São os passos decisivos da história moderna, sem dúvida. E a sua angústia congénita.
A metafísica da criação. Nada mais natural que dentro dela a criação artística tenha o seu lugar central, pois, enfim, o acto da criação é um acto estético, de dar forma. O que há no centro desta metafísica, como já se vê que nada mais dela se aproxima, é a acção. A acção que arranca da vontade e acaba no acto de dar forma. A noção de arte não vai ser admitida simplesmente; mas será central, definitiva em alguma forma desta metafísica da criação. O acto criador por antonomásia, no qual se mostra a identidade do que aparecia separado por um abismo: o espírito e a natureza. A arte, longe de ser forjadora de sombras e fantasmas, é a revelação da verdade mais pura; é a manifestação do absoluto. Em vez de pretender eternizar o que é contraditório, é a manifestação mais imediata da identidade. A arte, nesta metafísica que se define — até onde é possível que uma metafísica se defina — em Schelling, realiza uma função que é parte da própria criação divina. As formas da arte são cópia directa, revelação imediata das ideias divinas, das ideias que actuaram na criação. Diz Heimsoeth: “ideias eternas ou as auto-intuições de Deus — anteriores, como a própria identidade absoluta, a todo o antagonismo do subjectivo, do natural e do espiritual — são os arquétipos de todas as realidades que se desdobram em graus e diferenças, são as formas das coisas tal como estas são no Absoluto; são as próprias e verdadeiras coisas em si. E esta é a grande função metafísica da arte: apresentar in concreto estas ideias em imagens fiéis e no próprio produto sensível, infinito. Sem o saber, revela o génio artístico “interior dessa natureza bem-aventurada no qual não há nenhuma oposição””.
As formas da arte são as formas das coisas em si e como elas são nos arquétipos.
E conclui no mesmo parágrafo:
As ideias que a Filosofia só consegue interpretar no sistema abstracto fazem-se objectivas por meio da arte como almas de coisas reais[6].
Não podia dar-se reivindicação mais profunda e mais total da arte a partir da filosofia. Inevitavelmente teve que dar-se num pensador platónico dentro do antiplatonismo que significa a Metafísica moderna. Metafísica da criação, da vontade e da liberdade que, portanto, cada vez mais se separa violentamente da herança platónica: a contemplação da unidade do ser, a contemplação amorosa da unidade do mundo para lá do que descobrem os olhos encontrados.
Corresponde, como é sabido, este pensamento de Schelling ao Romantismo. No Romantismo, poesia e filosofia abraçam-se, chegando a fundir-se em alguns momentos com fúria apaixonada; como amantes separados durante longo tempo e, que ao encontrarem-se, pressentem que a sua união não será duradoura; fundem-se com a paixão que precede a morte. Poesia e filosofia transbordam cada uma de si mesma, são igualmente extremistas, e não aspiram ao absoluto porque se crêem já dentro dele. Ambas se sentem a si mesmas como uma revelação transcendente. Tudo nelas se escreve com maiúscula…, a embriaguez, esse momento da embriaguez em que parecem fundir-se todas as barreiras. A consciência esfumou-se e… — porque não vamos acreditar neles?, sem dúvida tocam algo divino. Tocam o divino que excede em ambas as forças de um ser humano, e dobradas pelo seu peso, caem. A sua luz, a luz de que dispõem, numa consciência humana, não é suficiente para reduzir à razão, à medida, todo o tesouro de que se vêem inundados[7].
Poetas e pensadores do Romantismo passam diante de nós ajoujados por uma obra gigantesca, até nas dimensões. O que se lhes oferece é inesgotável. Têm que de novo criar o universo. Nem um instante de descanso, nem uma trégua. Todas as energias e toda a vigília são poucas para o que têm que fazer, e o tempo voa. Hoje vemo-los como numa nuvem de fogo, suspensos entre o céu e a terra. Demasiado visíveis para que os identifiquemos com um anjo criador, mas por cima da terra. Não são nenhum criador, mas a sua figura sim, encontra-se nesta atmosfera rarefeita onde, por não haver corpos já, não há limites e é possível acreditar-se que se está em vários sítios indistintamente, em vários lugares ao mesmo tempo.
O poeta que mais se destaca neste tempo é o francês Victor Hugo, embora na Alemanha, na Alemanha da filosofia, floresça o esplendor romântico do grupo de Tena e um Novalis e um Hölderlin. Todos eles têm figuras de deuses incompletos, de jovens deuses desterrados ou derrubados. Mas Victor Hugo é um profeta que realiza as suas próprias profecias; dir-se-ia que ele passa o tempo a profetizar-se a si próprio e que, além disso, o realiza. E ao realiza-lo, se diminui, se humaniza.
* * *
Não pôde durar muito este tempo de gigantes. Depois da última geração romântica, vem a correcção seguir-lhe os passos. A Victor Hugo sucede Baudelaire. E a Schelling, Kierkegaard. Dir-se-ia que estes dois sucessores que mereciam ter sido coetâneos, pois fazem o mesmo, trazem uma coisa essencial: medida, consciência. O homem desce à terra entre nuvens de fogo e abre os olhos e encontra-se homem. Homem que vive na atmosfera da criação, sim, mas como criatura, não como criador. E já tem consciência do seu pecado, consciência estimulante, exacerbada, como se à perene consciência do pecado original se juntasse outra, de um acontecimento mais recente; a consciência do recente pecado, do pecado romântico, é claríssima e dolorosa nestes dois génios da consciência vigilante, nestes dois espíritos que não se toleram a si próprios nem num instante de claudicação. Os dois são, ou pelo menos assim parecem, tremendamente arbitrários e desprendidos dos homens. Pelo menos, isto é o que na sua personalidade humana (dá um pouco de vergonha dizer “empírica”) parecia sugerir aos que tiveram a sorte, anulada pela cegueira, de os ver e conviver com eles. Arbitrariedade, mas quanto rigor, e, sobretudo, quanta inexorabilidade para julgar a situação verdadeira em que se encontravam essencialmente como homens. Quanta honradez para distinguir o sonho da realidade, para separar o momento da queda irreparável que de uma vez para sempre nos coloca do “lado de cá” da criação.
Nestes dois pensadores — ninguém duvidará de que Baudelaire o foi —, nestes dois poetas — não é preciso demonstrar que Kierkegaard o era — o que tem lugar, em verdade, é uma purificação. Eles depuram, quase expiam, a embriaguez anterior e reduzem as coisas às suas justas proporções. Os dois são quase científicos no seu profundo anseio de fixar de modo exacto. E o que primeiramente se torna exacto neles, pensadores e poetas ao mesmo tempo, é a separação de poesia e metafísica. A luz fez-se de novo, voltamos à terra. Regressamos. E as coisas ficam onde realmente estão, não onde por um instante se quis que estejam, julgando-se mais que homens, num arrebatamento. Porque, mesmo supondo que tudo o que dizem os românticos é verdade, será, em todo o caso, verdade para eles, não para os que somente são homens, criaturas criadas, dotadas de liberdade, mas de uma liberdade que está encerrada dentro da mais peremptória necessidade. Seres livres, mas acorrentados na existência por múltiplos laços, e, especialmente, pela cadeia do tempo.
Ambos trazem consciência. Consciência da poesia em Baudelaire, quase exageradamente, em quem existe a consciência da sua finitude e, ainda mais, a consciência do pecado. Baudelaire, soberbo e humilde, soberbo em quem a humildade vence, define-se a si mesmo como pecador. Mas como pecador que espera, precisamente pela poesia, que o Criador lhe tenha guardado um lugar sob seus pés. Um pecador que espera salvar-se como poeta; como filho.
E por fazer a mesma coisa: aplicar inexoravelmente a consciência, o pensamento e a poesia desligam-se. Já não voltarão a juntar-se perante os nossos olhos. A ideia da criação não pôde forjar uma união durável entre a poesia e o pensamento. O abraço, como já víamos desde o princípio e como já sentiam os que se abraçavam, durou tanto como um relâmpago. Também é certo que talvez esteja por averiguar o que ali houve de autêntico. É muito possível que uma das questões essenciais para os poetas e também — porque não? —para os filósofos seja averiguar o verdadeiro sucesso deste enlace entre a poesia e a filosofia, que se deu no Romantismo. O verdadeiro sucesso e o seu sentido.
* * *
É nesta época que o pensamento e a poesia se desligam, se ignoram. E é também quando, pela primeira vez, a poesia corresponde à atitude imperialista do pensamento filosófico, aspirando ela igualmente a idêntico poder, tornando-se absoluta.
E a verdade é que a poesia adquiriu consciência nesta era da consciência. O poeta vai adquirindo, cada vez mais, consciência da sua poesia e de si mesmo. O poeta tem já teoria; pela primeira vez teoriza sobre a sua arte e até pensa sobre a sua inspiração. O poeta propriamente romântico pensa a partir da sua inspiração — Novalis, Victor Hugo —. O poeta que vem a seguir — Baudelaire — interpreta a sua inspiração como trabalho. “A inspiração é trabalhar todos os dias”, disse o poeta de Les Fleurs du Mal. Isto é, o poeta já não se sente, ou não se quer sentir, à mercê do delírio que o possui. E é tanto mais significativo porque quem pensava assim era o mesmo que disse: “Embriagai-vos, embriagai-vos sempre, de virtude, de vinho…, que importa”; o mesmo de “Em qualquer parte, desde que esteja fora do mundo.” E neste caso deveria distinguir-se entre a própria inspiração poética e o que o homem Charles Baudelaire, que vivia na época do positivismo, pensava. As suas ideias correspondiam plenamente às da época: primazia do trabalho, domínio total da consciência. Mas significam um degrau mais no processo de aproximação à consciência da poesia, e, neste caso singular, a feliz união da inspiração com o esforço: do “poeta vate” com o “poeta faber”. Baudelaire realizou plenamente o que ele atribuíra ao seu génio tutelar; Edgar Poe, “submetido à sua vontade o demónio fugitivo dos instantes felizes”.
E neste caminho da poesia consciente, o poeta contemporâneo Paul Valéry significa um passo decisivo e talvez a identificação mais total, até agora, de pensamento e poesia, desde o lado poético no seu culto à lucidez. A poesia deixou de ser um sonho:
A verdadeira condição de um verdadeiro poeta é o que há de mais distinto do estado de sonho. Aí não vejo senão procuras voluntárias, torpores de pensamentos, consentimento, da alma e genes delicados e o triunfo perpétuo do sacrifício… Quem diz exactidão e estilo invoca o contrário do sonho. (O que diz exactidão e estilo invoca o contrário do sonho, mas o sonho não deixou de estar na raiz da poesia; o que acontece é que se tornou consciente o esforço infinito que é necessário para exprimir o sonho, o que pela primeira vez o poeta confessa que durante séculos manteve no silêncio: o trabalho.)
Porque
Não é com abcessos e sonhos que se impõe à palavra tão preciosos e tão raros ajustamentos. O que quer escrever o seu sonho deve estar infinitamente acordado. (A raiz do sonho não secou na poesia; teria então secado a própria poesia. O que acontece é que o poeta, a partir da poesia, adquire cada vez mais consciência para o seu sonho, exactidão para o seu delírio.)
E a razão para que isto aconteça é que o poeta afirma-se na sua poesia. Baudelaire e Valéry são realizadores, os dois, da “poesia pura”. Poesia pura é afirmação, crença na poesia, na sua substantividade, na sua solidão, na sua independência.
E a “poesia pura” foi estabelecer, a partir do lado contrário do romantismo, tudo o que a poesia é. Tudo, entendamos em relação com a metafísica; tudo quanto ao conhecimento, tudo quanto à realização essencial do homem. O poeta basta-se para existir com fazer poesia; é a forma mais pura da realização da essência humana.
E precisamente a partir desta maneira de enlaçar poesia e pensamento torna-se mais difícil, impossível, na realidade, a reconciliação entre poesia e metafísica. Porque o poeta puro já não precisa dela. E no outro lado, o filósofo moderno também crê que realiza a essência do homem pelo seu pensar metafísico. Dir-se-ia que poesia e pensamento chegaram a ser duas formas de acção e por isso, mais que nunca, se excluem, se ignoram.
E tanto é assim que o poeta tem já a sua ética na realização da sua poesia. A sua ética que é estar acordado, precisamente; este velar persistente, este sacrifício perene para conseguir a claridade à beira do sonho. Paul Valéry diz:
É no ponto em que a literatura encontra o domínio da ética: é nesta ordem de coisas que pode introduzir-se o conflito do natural e do esforço; que ela obtém os seus heróis e os seus mártires da resistência ao fácil[8].
O poeta mantém-se vigilante entre o seu sonho originário — a raiz nebulosa — e a claridade que se exige. Claridade exigida pelo próprio sonho, que aspira a realizar-se por virtude da palavra poética. E o herói, o mártir que se consome pela poesia. Terá, porventura, necessidade de alguma outra coisa para justificar, e até “santificar”, os seus dias?
A situação, portanto, mudou quase por completo desde os tempos da Grécia. O poeta já não está fora da razão, nem fora da ética; tem a sua teoria e tem a sua ética próprias, descobertas por ele mesmo, não pelo filósofo. O poeta é; é tanto quanto pode ser quem faz metafísica. Os dois fazem algo essencial e que pretende bastar-se a si mesmo.
Mas se o poeta e o filósofo fazem poesia e metafísica, o mesmo e as suas pretensões são idênticas, é porque, partindo de um ponto comum, escolhem diferentes caminhos. E o caminho não é nunca arbitrário; depende do ponto de partida e do objectivo que se queira atingir e salvar. Dois caminhos são duas verdades e também duas diferentes e divergentes maneiras de vida. Se admitimos a unidade do humano, o homem que faz metafísica e o homem que faz poesia não podem partir de uma situação radicalmente diferente, hão-de ter, pelo menos, um ponto inicial comum. E, após esse arranque de uma situação comum, apresentar-se-á o momento em que algo, uma disjuntiva, coloque a necessidade de escolher. E em virtude desta escolha separam-se logo os caminhos.
No fundo desta época moderna parece residir uma única palavra, um único anseio: querer ser. O homem quer ser, antes de tudo o mais. Cego, antes de esforçar-se para abrir os olhos, quer, quer cegamente. E quando olha é para ser. Por isso não quer ver senão o absoluto. À sua ânsia de absoluto nenhuma outra coisa pode ser dada senão o absoluto também. Mas, na realidade, não foi buscá-lo, porque o absoluto respira já dentro dele. Não se sente, na verdade, incompleto, o homem deste momento; não se sente necessário nem carente de sair em busca de nada. E, contudo, debaixo do seu “absoluto” está — mares de nada —, cega indiferente, a angústia. E, sobre a angústia, os altos muros do sistema.
A angústia que parece ser a raiz originária da Metafísica moderna, em geral; isto é, da Metafísica. E, por ser raiz, percebe-se mais claramente na sua última formulação que a partir da primeira; mais a partir de onde chegou, que de onde partiu. E já este sinal nos parece avisar que seja algo aparentado com a vontade e com a acção. A acção é mais clara quando se realizou do que no impulso inicial. E assim, a vontade sempre se mostra na sua plenitude quando conseguiu a sua realização, e não quando, envolta ainda entre trevas sentimentais e máscaras do entendimento, avança cautelosamente.
A metafísica moderna, isto é, a metafísica europeia, de rosto tão diferente do da filosofia grega, tem esta maneira cautelosa de proceder. Se a compararmos com a grega, veremos mais claramente a sua falta de transparência, a sua forma tão diferente de aparecer e de se revelar. Dir-se-ia que a grega mostrou desde o primeiro momento a plenitude das suas características, revelou-se a si mesma com a ingenuidade do que acaba de nascer. Avançava com a força da esperança unida à razão. Era uma aurora.
A metafísica europeia filha da desconfiança, do receio, em vez de olhar as coisas, à sua volta, de perguntar pelo ser das coisas, volta-se sobre si num movimento distanciador que é a dúvida. E a dúvida é já no “pai”, Descartes, a volta do homem na direcção de si mesmo, convertendo-se em sujeito. E é afastamento das coisas, do ser que antes se supunha indubitável. Descobrindo do sujeito intimidade do homem consigo mesmo, posse de si e desconfiança do que o rodeava. A virgindade do mundo tinha murchado, ele não voltaria a recuperá-la.
E com a virgindade do mundo, das coisas, a razão, ao desconfiar e afastar-se, afirmava-se a si mesma com um “absolutismo” novo, na verdade. A razão afirmava-se fechando-se e depois, naturalmente, já não podia encontrar outra coisa senão a si mesma.
Daí a angústia. A angústia que repele como fundo último toda esta metafísica, última revelação da sua raiz, definidora da atitude humana, donde saíram tão altivos e fechados sistemas de pensamentos. Parece existir uma correlação profunda entre angústia e sistema, como se o sistema fosse a forma da angústia, a forma que adopta um pensamento angustiado ao querer afirmar-se e estabelecer-se sobre tudo. Último e decisivo esforço de um ser náufrago no nada que só conta consigo. E como não teve nada a que agarrar-se, e como somente contava consigo mesmo, dedicou-se a construir, a edificar algo fechado, absoluto, resistente. Somente o sistema oferece segurança ao angustiado. Castelo de razões, muralha fechada de pensamentos invulneráveis perante o vazio.
E a angústia não se resolve senão com actividade. Não leva à contemplação, mas a um pensamento que é acção, a um pensar que se põe em marcha porque é o único que pode pôr em marcha o ser angustiado, o único que tem algo que possa agarrar-se. A partir da dúvida cartesiana, a angústia era o final indeclinável.
Criatura consciente e nada mais. À medida que se afirma como consciente e se vai tornando em fundamento de tudo, vai-se afirmando também como nada mais. A solidão vai-se aprofundando, vai-se ampliando e, por fim, a angústia aparece. O isolamento total, o isolamento diante de tudo, e, em seguida, a acção.
Porém, a angústia não somente é consequência da solidão, de “ser consciente e nada mais”, mas a angústia é o princípio da vontade. Ou talvez haja angústia porque há já um princípio de vontade. O certo é que angústia e vontade identificam-se. E a vontade exige solidão, é anti-contemplativa. E singular, evita a comunidade.
E assim, o sistema é a forma da angústia e a forma do poder. A forma da incomunicação, da solidão.
* * *
A poesia, na verdade, vive afastada disto. Poder e vontade não lhe interessam, nem entram no seu âmbito. A consciência nela não comporta poderio. E esta é a maior diferença. Quando a poesia fale de ética, falará de martírio, de “sacrifício”. A poesia sofre o martírio do conhecimento, padece pela lucidez, pela clarividência. Padece, porque a poesia continua a ser mediação, e nela a consciência não é signo de poder; mas necessidade ineludível para que uma palavra se cumpra. Claridade de que se precisa para que o que está desenhado mais nada que na névoa se fixe e torne nítido, adquira “número e medida”.
Porque a poesia não vai captar aquilo que já tem “número, peso e medida”. Não vai, como a filosofia, descobrir as leis do “cálculo segundo o qual Deus fez o mundo”, as leis da criação, mas vai encontrar o número, peso e medida que correspondem ao que ainda não os tem[9]. E por isso é padecimento e sacrifício. E por isso é inspiração chamada, ímpeto divino. E justiça caritativa; ocasião estendida na direcção do que não conseguiu ser, para que finalmente seja. Continuidade da criação.
Não pode verter-se na forma do sistema como a metafísica, nascida da angústia, porque não pode ficar nunca fechada. E no dia em que ficasse definida, seria o dia final da criação. Da criação que, pela poesia, segue o seu curso.
Na poesia há também angústia, mas é a angústia que acompanha a criação. A angústia que provém de se estar situado perante algo que torna exacta a sua forma diante de nós, porque somos nós que temos de dar-lha. Na angústia do poeta não há perigo, nem ameaça alguma, mas somente temor, o “santo temor” de se sentir obrigado a algo que nos levanta por cima de nós mesmos, que nos lança e obriga a ser mais que homens. Diz o fenomenólogo Kolnai no seu estudo O Nojo[10]: “O conceito de angústia é inseparável do conceito de ameaça, perigo, necessidade de se salvar ou de socorro.” E o poeta, na verdade, quando sofre a angústia da criação, não repara que seja ele que se salva por meio dela. É a palavra que se salva por meio do poeta, e se, depois, o poeta se salva é por que já está dito que “quem perde a sua vida ganhá-la-á”. E que “o resto ser-vos-á dado por acréscimo”.
Diz também Kolnai no trabalho indicado:
O modo intencional da angústia é duplo. A angústia refere-se, simultaneamente a dois objectos completamente independentes: o objecto que produz a angústia e a pessoa ou sujeito que a sofre. Eu tenho angústia perante uma ameaça de perigo…, mas, evidentemente, só tendo em conta eu próprio, a minha pessoa.
O que se torna patente na angústia, portanto, é a pessoa; é ela que se angustia para se impor. A pessoa não é outra coisa que isso a que Kierkegaard chamou “espírito”. Poderíamos afirmar que este impor-se da pessoa é um desprendimento da natureza e de todo o imediato, ao voltar-se sobre si, e o mostrá-lo é o acontecimento decisivo da filosofia moderna.
Daí que a angústia pareça jazer no fundo de todo o filosofar, e, mais que jazer, actualiza-se no pensamento filosófico moderno, conforme se comprova em Kierkegaard e em Heidegger, que parece ser o herdeiro de toda a filosofia alemã desde Kant. Pois o que mais impressiona no “facto” da filosofia de Heidegger, além do seu “êxito”, é que parece sair de uma tradição, que não tem o menor carácter estrangeiro. Está entroncada na tradição metafísica alemã, de tal maneira que parece ser a revelação do seu último segredo. Pelo menos, apresenta-se historicamente com esta marca.
A pessoa, o espírito. Mas os dois termos sugerem em seguida um terceiro, a vontade voltada para o poder. E assim nos aparece dentro da própria filosofia.
A figura da angústia, com a sua imediata consequência, o poder, está traçada insuperavelmente no seu livro clássico O Conceito da Angústia.[11]
Diz assim no capítulo intitulado “O Conceito da Angústia”:
A inocência é ignorância. Na inocência o homem não está ainda definido como espírito, mas a alma está numa unidade imediata com o seu ser natural. O espírito no homem este ainda a sonhar. [. . .]
Neste estado há calma e repouso; mas, ao mesmo tempo, há uma outra coisa que, entretanto, não é perturbação e luta; porque não há nada contra o qual se lute. Mas que é isso, então? Nada. E qual o efeito desse nada? Ele gera a angústia. Aí está o mistério profundo da inocência: ser ao mesmo tempo angústia. Ao sonhar, o espírito projecta a sua própria realidade, que é nada; mas este nada vê sempre a inocência fora de si mesmo.
A angústia é uma determinação do espírito que sonha, e, como tal tem o seu lugar na Psicologia. A vigília estabelece a diferença entre eu próprio e um outro eu em mim; o sono suspende essa diferença, o sonho faz que ela seja sugerida como um vago nada. A realidade do espírito mostra-se sempre como uma imagem que procura a sua possibilidade, mas desaparece logo que querem agarrá-la, e que é um nada que só pode angustiar-nos.
[. . .]
O aparecimento da angústia é o centro de todo o problema. O homem é uma síntese de alma e de corpo. Mas esta síntese não pode ser imaginada, se os dois elementos não se unem num terceiro. Este terceiro é o espírito. Na inocência, o homem não é somente um simples animal; como, aliás, se o fosse em qualquer momento da sua vida, ele nunca se tornaria num homem. O espírito está, pois, presente, mas num estado imediato, de sonho. Mas, na medida da sua presença, ele é de qualquer modo, um poder inimigo; porque perturba sempre essa relação entre a alma e o corpo que subsiste certamente sem todavia subsistir dado que não atinge substância a não ser pelo espírito. Por outro lado, o espírito é uma potência amiga, desejosa precisamente de constituir a relação. Qual é, portanto, a relação do homem com esta potência equívoca?, qual a relação do espírito consigo mesmo e com a sua condição? Esta relação é a angústia. O espírito não pode estar livre de si mesmo; mas tão-pouco compreende, se enquanto tem o seu eu fora de si mesmo; aniquilar-se na vida vegetativa o homem também não pode, pois está definido como espírito; não pode fugir da angústia, porque ele ama-a; amá-la verdadeiramente, tão pouco, porque foge dela. […] Não há aqui um saber do bem e do mal, etc.; toda a realidade do saber projecta-se na angústia como o imenso nada da ignorância[12].
Ignorância do bem e do mal, ignorância da existência, que aparece na plenitude da sua possibilidade, como uma sombra, povoando de pressentimentos infinitos a brancura deserta da inocência. Depois (Kierkegaard segue o texto da queda de Adão e Eva no Génesis) uma palavra só descarrega a angústia… Um pouco adiante do que antes se transcreveu, Kierkegaard continua:
A proibição inquieta Adão, porque ela desperta nele a possibilidade da liberdade. O que se apresentava à inocência como o nada da angústia penetrou agora nele, e agora aqui permanece um nada: a angustiante possibilidade de poder. Quanto ao que ele pode, ele não tem nenhuma ideia. […] Não há em Adão senão a possibilidade de poder; como uma forma superior de ignorância, como uma expressão superior da angústia, porque assim, neste grau mais elevado ela é e não é, ele ama-a e evita-a[13].
E umas linhas depois:
A infinita possibilidade de poder que despertou a proibição, aumentou com o facto desta possibilidade evocar uma outra como sua consequência[14].
Sonho. Angústia perante a totalidade pressentida, perante o infinito da liberdade. E queda no poder:.. Sabemos que Kierkegaard não emprega a palavra poder no sentido de poder de domínio, mas no sentido da possibilidade de um ser que desperta no momento em que cai, isto é, que cai na sua própria existência do sonho inocente em que está, enquanto ainda não saiu do seio de Deus ou do nada. Angústia; pressentimento dentro do nada, da queda da própria existência, do acordar no pecado de ser ele próprio. La vida es sueño di-lo mais claramente, mais plasticamente, pelo menos, com a sua imagem central da vida como sonho (tudo é sonho, menos o “obrar bem que nem em sonhos se perde”). Mas no poeta a vida é o sonho, e no filósofo o sonho é a inocência e a queda é o despertar para a liberdade. Nos dois, a liberdade, o único real.
Liberdade além de real, absoluta em Kierkegaard, pois reduz a passagem bíblica a um acontecimento interior no homem, e as palavras de Deus é Adão quem as dirige a si mesmo.
Muito audaz parecerá talvez levar o arranque da poesia até um acontecimento tão decisivo, tão no fundo da natureza humana, que não há ciência que o possa alcançar nem medir. Mas a poesia não é nada arbitrário e aquele que é poeta é-o com uma intensidade tão forçosa como o que escolhe a filosofia ou a ciência. Pertence a filosofia à linhagem de ocupações humanas que não se levam a cabo senão por exigência do destino, pelo seu carácter forçoso inevitável. O poeta é.
O sonho da inocência. E a angústia como possibilidade da liberdade. Até aqui vão juntas poesia e qualquer outra forma de existência humana. Mas a distinção viria no instante seguinte, no instante do aparecimento do poder. Há quem descubra a infinidade deste poder, da possibilidade, e fica já preso a ela. Fica agarrado, fixo a esse poder; a essa infinita possibilidade, talvez porque não repare noutra coisa; em nada real determinado, que com a sua presença o encante. E há quem se acorrente pelo encanto de uma presença, pelo amor; há quem se acorrente renunciando ou não percebendo sequer a infinitude do poder. Este último é o poeta. O poeta está acorrentado pelo encanto e não chega à actualização do poder.
Na angústia, dizíamos, a pessoa abre caminho. O “espírito”, diz Kierkegaard; a “existência”, Heidegger. Mas, — de que modo? Se o poeta não segue o caminho da filosofia, — quer dizer que a pessoa, o espírito se absteve? Quer dizer que a poesia viria de uma epoché da pessoa? Mas pode o homem renunciar a ser pessoa?
Não será que o que vai pelo caminho da poesia não aceite ser pessoa, a não ser de maneira diferente do que o filósofo pela vontade? Não será que o poeta tenha escolhido o caminho do conhecimento? Se por conhecimento entendemos o que se entendia na Grécia e o que entende o homem não idealista, o conhecer algo que é, ou seja, o encontrar algo, um ser que nos exceda, que seja mais do que nós; um ser que nos vença enamorando-nos, prendendo-nos, pela sua parte, por amor. O poeta não quer alcançar a existência por si mesmo, não quer o seu ser conquistado ao nada, mas recebendo-o “por acréscimo”. O poeta não quer ser, sem algo que sobre ele seja que o domine sem luta, que o vença sem humilhação, que o abrase sem o aniquilar. Não pode aceitar uma existência solitária, à beira do vazio; uma existência ganha pela sua vontade só. Talvez não queira propriamente “existir”.
Nem Kierkegaard, nem nenhum dos que falaram da angústia, traçam o momento do amor. Somente aparece o temor. E não há amor porque não há nenhuma presença, nenhum rosto. A infinidade do poder e da liberdade sem limite algum, porque o limite teria que ter sido posto por algo, por alguma outra coisa. Na angústia não existe o outro. E é a plena existência do outro, que seria o uno, que a desfaria.
E na angústia do poeta sim, existe já algo que ele se vê forjado a criar, a transcrever ou a transcantar, porque se enamorou da sua presença sem a ver, e para a ver e gozar tem que buscá-la invocando-a, evocando-a. O poeta está enamorado da presença de algo que não tem, e, como não o tem, há-de trazê-lo. Cita Kierkegaard a ideia de Schelling de que a angústia designa principalmente os sofrimentos de Deus antes de principiar a criar. E diz, não sem ironia, em seguida:
“Em Berlim Schelling dizia a mesma coisa ainda com mais clareza, comparando Deus com Goethe e com J. Müller, que só se sentiam bem quando estavam a produzir; e quando lembrava, além disso, que uma beatitude incapaz de se comunicar é um suplício.”[15]
E está certo quando julga, umas linhas depois, estas ideias como antropomórficas. Assim é; esta angústia criadora é somente própria do homem. Mas o estranho é que Kierkegaard não se sentisse atraído a reflectir sobre o significado desta angústia criadora dos poetas.
E sem angústia o poeta não percorreria o caminho que parte do sonho — este sonho que há sob toda a poesia — e que é o sonho que há sob toda a vida. O poeta não sairia desse sonho da inocência se não fosse pela angústia. Angústia cheia de amor e não de vontade de domínio que leva até à criação do seu objecto.
Daí que a metafísica moderna nos apareça sempre como depois de lhe ter sido extraída alguma coisa. E o homem que essa metafísica delineia, um tanto vazio, um tanto desumanizado, ou, talvez, desdivinizado à força de querer divinizar-se. Porque a embriaguez da liberdade acaba com os limites; e os limites trazem-nos a presença das coisas, dos seres, do mundo e das suas criaturas e ainda do Fazedor de todas elas. A liberdade absoluta, com a ilusão de dispor inteiramente de si, de se criar a si por si mesma, acaba por extinguir tudo. “A angústia é a vertigem da liberdade”[16].
E a poesia seria a vertigem do amor. Vertigem que vai em busca do, que sem ser ainda, o enamora, em busca do “número, peso e medida” do que parece indeterminado, indefinido. A poesia anseia e necessita da claridade e da exactidão. Uma poesia que se contente com a vaguidade do sonho seria um contra-senso. Para tornar exacto o sono virginal da existência, o sono da inocência em que o espírito ainda não sabe de si, nem do seu poder, a poesia precisa de toda a lucidez de que é capaz um ser humano; necessita de toda a luz do mundo.
O poeta, ao não querer existir sem outro que o ultrapasse, volta-se para o lugar de onde saiu, para a origem. A poesia quer reconquistar o sono primitivo quando o homem não acordara na queda; o sono da inocência anterior à liberdade. Poesia é reintegração, reconciliação que fecha em unidade o ser humano com o sono de onde ele saíra, extinguindo as distâncias. A metafísica, pelo contrário, é um afastamento constante deste sono primitivo. O filósofo crê que somente afastando-se, que somente aprofundando no abismo da liberdade, que somente sendo ele próprio até ao fim, será salvo; será. O poeta crê e espera reintegrar-se, restaurar a unidade sagrada da origem, extinguindo a liberdade, e a sua culpa, ao não a utilizar. São dois movimentos divergentes que nem sequer têm uma origem exactamente comum, dado que o poeta não chegou ao instante da liberdade e do poder. Retrocede no limiar de si mesmo.
E este caminho não deixa de ser paralelo ao que antes vimos na Grécia. Ali a poesia retrocede perante a “violência” e fica presa na presença das coisas na admiração primeira. Reduzida para sempre ao assombro primitivo perante o universo, perante a sua beleza e a sua luz fugitiva. Agora, neste segundo caminho do homem, o poeta fica atrás também; não chega até ao abismo da liberdade que conduz a ser “ele próprio”. No próprio coração da angústia retrocede em busca do sono primitivo para o desenhar. Para o atravessar se for preciso, em busca do rosto amado. O poeta quer reencontrar o rosto que havia atrás do sono, a beleza meio oculta na inocência. E utiliza o saber, a consciência para o tornar exacto.
A poesia quer a liberdade para voltar atrás, para se reintegrar no seio de onde saíra; quer a consciência e o saber para tornar exacto o que entreviu. Por isso é melancolia. Melancolia que apaga a angústia em seguida. O poeta não vive, com rigor, na angústia, mas na melancolia.
Porque, tendo recuado perante o poder da liberdade, a angústia desaparece. Desaparece quando se anula o princípio do poder e da liberdade ou com outro nome: a vontade.
E fica a poesia ligada ao seu sono primitivo pela melancolia, melancolia que faz voltar em sua busca para o realizar. A poesia busca realizar a inocência transformá-la em vida, e mais além da consciência: em palavra, em eternidade.
Será impossível que não vejamos na poesia uma integridade mais perfeita que na Metafísica; impossível que não vejamos nela o caminho da restauração de uma unidade perdida. Impossível também que não a sintamos como a forma do que é comum a todos, dado que se a poesia se faz com palavras é porque só a palavra é inteligível. Porque a palavra, enfim, seria esse sono partilhado.
E isso persegue a poesia: compartir o sono, tornar a inocência primeira comunicável; partilhar a solidão, desfazendo a vida, percorrendo o tempo em sentido inverso, desfazendo os passos; desvivendo. O filósofo vive para diante, afastando-se da origem, buscando-se a “ele mesmo” na solidão, isolando-se e afastando-se dos homens. O poeta desvive, afastando-se do seu possível “ele mesmo”, por amor à origem.
(E é tanto assim que o filósofo sempre opõe de alguma maneira a solidão para ele fecunda, diríamos ética, com a comunidade. Heidegger fala do “ser” como da existência vulgar da qual o filósofo se separa, salvando-se em si mesmo. Ortega y Gasset fala da massa, da desumanização da qual se tem que sair quando se é autêntico, isto é, quando cada um é ele mesmo. Mais exacto é dizer que Ortega y Gasset traçou a vida como uma dialéctica de solidão e companhia, e disse que “viver é conviver”. O porquê disto na filosofia de Ortega y Gasset levar-nos-ia muito longe do tema, pois, pelo meu modo de ver, não é senão a condição caritativa do pensamento espanhol manifestado em Ortega y Gasset)[17].
A poesia desfaz também a história; desvive-a, percorrendo-a para trás, rumo ao sabor primitivo de onde o homem foi atirado. Rumo à vida virginal, inédita, que pulsa em todo o homem sob os acontecimentos do tempo. A poesia que nasceu na Grécia agarrada ao tempo, sem querer renunciar a ele, atravessa-o agora, perfura-o por não querer desprender-se do sono primeiro, da inocência pré-histórica. Filosofia e História marcham juntas para diante movidas pela vontade, enquanto que a poesia se submerge sob o tempo, desprendendo-se dos acontecimentos, em busca do primário e original; do indiferenciado, onde não existe nenhuma distinção.
O filósofo aprofunda no que constitui toda a distinção e a história é, por sua vez, o movimento realizador de toda a possível distinção. A filosofia é, de certo modo, a verdadeira história; mostra no seu curso o que de verdadeiramente decisivo ocorreu ao homem. Mas a poesia manifesta o que o homem é, sem que lhe tenha sucedido nada, nada fora do que lhe sucedeu no primeiro acto desconhecido do drama no qual começou o homem, caindo desse lugar irrecuperado que está antes do começo em toda a vida e que se chamou de maneiras diferentes. Maneiras diferentes que têm de comum o aludir a algo, a um lugar, a um tempo fora do tempo, em que o homem foi outra coisa além de homem. Um lugar e um tempo que o homem não pode situar de modo exacto na sua memória, porque então não havia memória, mas que não pode esquecer, porque tão-pouco havia esquecimento. Algo que ficou como pura presença sob o tempo e que quando se põe em acto é êxtase, encanto.
O poeta não pôde resignar-se a perder essa pátria distante e parte à procura dela. Mas o poeta é aquele que não queria salvar-se ele sozinho; é aquele para quem ser ele mesmo não tem sentido: “uma felicidade que não pode comunicar-se não é uma felicidade.” Não é a si mesmo que o poeta busca, senão todos e cada um. E o seu ser é somente um veículo, somente um meio para que tal comunicação se realize. A mediação, o amor que ata e desata, que cria. A mediação do amor que destrói, que consome, do amor que se desvive.
Não será possível que em algum dia feliz a poesia saiba tudo o que aprendeu no seu afastamento e na sua dúvida para fixar lucidamente e para todos o seu sono?
Tradução: José Bento
[1] Entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (tradução livre).
[2] Membros dispersos (tradução livre).
[3] Entidades não devem ser diminuídas sem necessidade (tradução livre).
*in Maria Zambrano, Metáfora do Coração e Outros Escritos, Lisboa, Assírio & Alvim, 1993, pp. 103-121
[4] É de grande interesse observar como na pintura espanhola, uma das grandes pinturas da Europa, não existe platonismo. Espanha, pátria da imagem da Imaculada Conceição de Maria, não produz uma só imagem de Virgem Platónica. As Puríssimas de Ribera, Zurbarán e Murillo, a quem corresponderia sê-lo, são algo bem diferente e que não cabe aqui ser investigado, embora não esteja nada longe da poesia.
[5] Com efeito, é gravíssima. E aqui nem sequer se faz alusão a uma linguagem sagrada, primordial, nem a uma poesia sacra, nem à liturgia, confessa quem o escreveu.
[6] H. Heimsoeth: La metafísica moderna, Edições Revista de Occidente, Madrid.
[7] O que se faz dolorosamente evidente no poeta Friedrich Hölderlin.
[8] Variété, II.
[9] “Sim, a naturalidade. Viver sempre uma ideia de depois ou de nunca, poente deste porto…” “Saídas lívidas, em madrugadas de chuva, de bailes, de cidades que ainda não estão no tempo. . . ” “Suspiros duplos no jardim, por galerias que ainda são rocha, no canto de cotovias que ainda são sonho.” (Juan Ramón Jiménez, Inverosimilitud.)
[10] Revista de Occidente, 1929, Madrid.
[11] Como Maria Zambrano fez as transcrições de uma tradução do livro de Kierkegaard publicada pelas Edições da Revista de Occidente sem dizer qual o tradutor, e porque, sem o indicar, fez cortes no texto citado, achei preferível recorrer a uma tradução de O Conceito da Angústia feita do original dinamarquês. Assim, utilizei a tradução para francês de Knud Ferloy e Jean-Jacques Gateau incluída no volume Miettes Philosophiques. Le concept de l’angoisse. Traité du Désespoir (Editions Gallimard, Paris, 1990). (Nota do Tradutor).
[12] Obra citada, pp. 201-202 e 204.
[13] Obra citada, p. 205.
[14] Obra citada, p. 205.
[15] Obra citada, p. 222.
[16] Obra citada, p. 224.
[17] Respira aqui o tremendo problema da convivência humana, da comunidade e do onde, em que se verifica. Isto é, se é possível uma autêntica comunicação e desde onde.
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