Fichamentos e Resenhas

Pensamentos — Blaise Pascal

Biografia

[…] chegou a descobrir os fundamentos da geometria euclidiana. Aos dezesseis anos de idade, escreveu um tratado de tal profundeza que se dizia não ter sido escrito outro, depois de Arquimedes, que se lhe pudesse comparar.

Aos dezoito anos de idade, inventou uma máquina de calcular.

[…] dedicou-se exclusivamente à defesa do cristianismo.

Artigo I — Contra a indiferença dos ateus

A imortalidade da alma é uma coisa que nos preocupa tanto, que tão profundamente nos toca, que é preciso ter perdido todo sentimento para permanecer indiferente diante dela.

É preciso ter a alma muito elevada para compreender que não há aí satisfação verdadeira e sólida; que todos os nossos prazeres não passam de vaidade; que os nossos males são infinitos; que, finalmente, a morte que nos ameaça a cada instante deve colocar-nos infalivelmente, dentro de poucos anos, na terrível necessidade de sermos eternos, ou aniquilados, ou infelizes.

[…] não há felicidade para os que não possuem luz alguma.

[…] porque aquele que duvida e não investiga se torna, então, não só infeliz, mas também injusto.

Na verdade, é glorioso, para a religião, ter como inimigos homens tão insensatos, pois a sua oposição lhe é tão pouco perigosa que serve, ao contrário, para o estabelecimento de suas principais verdades.

É uma coisa monstruosa ver, num mesmo coração e ao mesmo tempo, essa sensibilidade pelas menores coisas e essa estranha insensibilidade pelas maiores.

[…] os homens só gostam, naturalmente, do que lhes possa ser útil.

Pretenderão alegrar-nos dizendo-nos que estão convencidos de que a nossa alma não passa de um pouco de vento e de fumaça, e isso num tom orgulhoso e satisfeito? Será coisa que se diga com alegria? Não será, ao contrário, uma coisa que deva ser dita com tristeza, como sendo a mais triste do mundo?

Nada acusa tanto uma extrema fraqueza de espírito como não conhecer qual é a desgraça de um homem sem Deus;

[…] nada é mais covarde do que mostrar valentia contra Deus.

[…] sejam ao menos homens de bem, se não puderem ser cristãos;

[…] só há duas espécies de pessoas que podem ser chamadas de razoáveis: ou os que servem Deus de todo o coração porque o conhecem, ou os que o procuram de todo o coração porque não o conhecem.

Artigo II — O que é mais vantajoso: acreditar ou não acreditar na religião cristã

Conhecemos, pois, a existência e a natureza do finito, porque somos finitos e extensos como ele.

[…] não se pode conhecer bem a existência de uma coisa sem conhecer a sua natureza.

Pesemos o ganho e a perda, preferindo coroa, que é Deus. Estimemos as duas hipóteses: se ganhardes, ganhareis tudo; se perderdes, nada perdereis. Apostai, pois, que ele é, sem hesitar.

[…] todo jogador arrisca com certeza para ganhar incertamente o finito, sem pecar contra a razão.

[…] trabalhai, pois, não para vos convencerdes pelo aumento das provas de Deus, mas pela diminuição das vossas paixões.

Artigo III — Marcas da verdadeira religião

A verdadeira religião deve ter por marcas obrigar a amar seu Deus. Isso é bem justo.

Nenhuma (outra) religião pediu (jamais) a Deus que o amasse e o seguisse.

A verdadeira natureza do homem, o seu verdadeiro bem e a verdadeira virtude e a verdadeira religião são coisas cujo conhecimento é inseparável.

Uma religião puramente intelectual seria mais proporcionada aos hábeis, mas não serviria ao povo.

[…] é preciso que o povo entenda o espírito da letra e que os hábeis submetam o seu espírito à letra (praticando o que há de exterior).

Nenhuma religião, a não ser a nossa, ensinou que o homem nasce com pecado; nenhuma seita filosófica o disse; portanto, nenhuma disse a verdade.

[…] o que é admirável, incomparável e inteiramente divino, é que essa religião que sempre durou foi sempre combatida.

[…] para reconhecer o que é verdadeiro, basta ver o que sempre existiu: com efeito, é certo que o verdadeiro sempre existiu e que nenhuma falsidade existiu sempre. Assim), o Messias foi sempre acreditado. A tradição de Adão era ainda nova em Noé e em Moisés.

Deus não se manifesta aos homens com toda a evidência que lhe seria possível.

[…] é igualmente perigoso que o homem conheça Deus sem conhecer sua miséria, e conheça sua miséria sem conhecer o Redentor que pode curá-lo dela.

Artigo IV — Verdadeira religião provada pelas contrariedades existentes no homem e pelo pecado original

[…] é preciso, necessariamente, que a verdadeira religião nos ensine e que haja no homem um grande princípio de grandeza e um grande princípio de miséria.

É preciso, pois, que a verdadeira religião nos ensine a não adorar senão a ele e a não amar senão a ele.

É em vão, oh homens, que procurais em vós mesmos o remédio para as vossas misérias.

Vossas enfermidades principais são o orgulho, que vos subtrai de Deus, a concupiscência, que vos liga à terra […]

Sem dúvida, não há nada que choque mais a nossa razão do que dizer que o pecado do primeiro homem tornou culpáveis os que, estando tão afastados dessa fonte, parecem incapazes de participar dele.

De sorte que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério inconcebível ao homem. O pecado original é uma loucura diante dos homens; mas, é dado como tal. Não deveis, pois, censurar de falta de razão essa doutrina, uma vez que a dou como não tendo razão. Mas, essa loucura é mais sábia do que toda a sabedoria dos homens:

Todas essas contrariedades, que pareciam afastar-me mais do conhecimento da religião, foi o que mais cedo me conduziu à verdadeira.

[…] orgulho [e] preguiça, […] são as duas fontes de todos os vícios […]

O cristianismo é estranho: ordena ao homem que reconheça que é vil e até abominável; e ordena-lhe que queira ser semelhante a Deus. Sem esse contrapeso, essa elevação o tornaria horrivelmente vão, ou esse abaixamento o tornaria horrivelmente abjeto.

A encarnação mostra ao homem a grandeza de sua miséria pela grandeza do remédio de que ele necessita. VII. Não se acha, na religião cristã, um abaixamento que nos torne incapazes do bem, nem uma sanidade isenta do mal.

São necessários movimentos de baixeza, não por natureza, mas por penitência; não para ficar neles, mas para chegar à grandeza. São necessários movimentos de grandeza, não por merecimento, mas por graça, e depois de se ter passado pela baixeza.

Com que pouco orgulho um cristão se julga unido a Deus com que pouca abjeção se iguala aos vermes da terra!

Artigo V — Submissão e uso da razão

A última tentativa da razão é reconhecer que há uma infinidade de coisas que a ultrapassam. Revelar-se-á fraca se não chegar a conhecer isso. É preciso saber duvidar onde é preciso, afirmar onde é preciso, e submeter-se onde é preciso.

Se submete-se tudo à razão, a nossa religião nada terá de misterioso nem de sobrenatural. Se contrariam-se os princípios da razão, a nossa religião será absurda e ridícula.

Dois excessos: excluir a razão, só admitir a razão. IV. Diz bem a fé o que não dizem os sentidos, mas não o contrário do que vêem estes.

Não vos admireis de ver pessoas simples crer sem raciocínio. Deus lhes dá o amor a ele e o ódio a si mesmo. Inclina-lhes o coração a crer.

Os que crêem sem ter lido os Testamentos é porque têm uma disposição interior tão santa que o que ouvem dizer da nossa religião lhe é conforme. Sentem que um Deus os fez.

[…] é preciso amar somente a Deus e odiar somente a si mesmo […]

[…] encontro num canto do mundo um povo particular, separado de todos os outros povos da terra, o mais antigo de todos, cujas histórias precedem de vários séculos as mais antigas que possuímos. Encontro, pois, esse povo grande e numeroso, saído de um só homem, que adora um só Deus e que se conduz por uma lei que eles dizem ter recebido de sua mão.

[…] é a primeira lei de todas, de tal maneira que, antes mesmo da palavra lei ter sido usada pelos gregos, havia cerca de mil anos que eles a tinham recebido e observado sem interrupção. Assim, acho estranho que a primeira lei do mundo seja considerada também como a mais perfeita, a ponto dos maiores legisladores terem emprestado dela as suas, como acontece com a lei das doze tábuas de Atenas, que foi em seguida tomada pelos romanos, e como seria fácil de mostrar, se Josefo e outros não tivessem tratado suficientemente dessa matéria.

[…] há muita diferença entre um livro que um particular faz e lança no povo e um livro que faz dele próprio um povo. Não se pode duvidar de que o livro seja tão antigo quanto o povo.

Toda história que não é contemporânea é suspeita […]

Artigo VII — Dos judeus

[…] começou a estabelecer um povo sobre a terra, formado propositadamente, que devia durar até ao povo que o Messias formaria por seu espírito.

Os judeus estavam habituados aos grandes e brilhantes milagres; e assim, tendo tido os grandes lances do mar Vermelho e a terra de Canaã como um resumo das grandes coisas do seu Messias, esperavam coisas ainda mais brilhantes, das quais as de Moisés eram apenas amostras. Tendo o mundo envelhecido nesses erros carnais, Jesus Cristo veio no tempo predito, mas não com o brilho esperado; e, assim, eles pensaram que fosse. Depois de sua morte, São Paulo veio ensinar aos homens que todas essas coisas tinham vindo em figuras; que o reino de Deus não consistia na carne, mas no espírito; que os inimigos dos homens não eram os babilônios, mas as suas paixões; que Deus não se achava bem nos templos feitos pela mão do homem, mas num coração puro e humilhado; que a circuncisão do corpo era inútil, mas que era necessária a do coração; que Moisés não lhes dera o pão do céu, etc.

Os judeus amaram tanto as coisas figurantes e as esperaram tanto que desconheceram a realidade quando ela veio no tempo e da maneira preditos.

É admirável que isso tenha tornado os judeus grandes amadores das coisas preditas e grandes inimigos do cumprimento, (e que até essa aversão tenha sido predita).

Nota do leitor: Jesus se manifestou por meio de poesia. Mas seu povo preferiu a poesia ao invés do autor delas.

[…] esses livros que predizem o seu Messias, afirmando a todas as nações que ele devia vir e da maneira predita nos seus livros, que eles tinham aberto a toda a gente. É assim esse povo, que caiu com o advento ignominioso e pobre do Messias, foi o seu mais cruel inimigo.

Os que rejeitaram e crucificaram Jesus Cristo, que lhes foi em escândalo, são os que trazem os livros que o testemunham e que dizem que ele será rejeitado e em escândalo.

Se o sentido espiritual tivesse sido descoberto, eles não seriam capazes de amá-lo; e, não podendo trazê-lo, não teriam tido zelo para a conservação dos seus livros e das suas cerimônias.

O tempo do primeiro advento foi predito; o tempo do segundo não o foi13, porque o primeiro devia ser oculto; o segundo devia ser brilhante e de tal modo manifesto que os seus próprios inimigos o devessem reconhecer. Mas, como só devesse vir obscuramente, para ser reconhecido somente pelos que sondassem as Escrituras, que podiam fazer os judeus, seus inimigos?

A religião dos judeus foi formada sobre a semelhança da verdade do Messias, e a verdade do Messias foi reconhecida pela religião dos judeus, que era a sua figura.

Assim, a nossa religião é divina no Evangelho, nos apóstolos e na tradição; mas, é ridícula nos que a tratam mal. XII. (Os judeus eram de duas espécies: uns não tinham senão as afeições pagãs, outros tinham as afeições cristãs).

Os verdadeiros judeus e os verdadeiros cristãos reconhecem um Messias que os faria amar a Deus e, por esse amor, triunfar dos seus inimigos.

Começando a criação do mundo a distanciar-se, Deus providenciou um único historiador contemporâneo, e comissionou todo um povo para a guarda desse livro, afim de que essa história fosse a mais autêntica do mundo e de que todos os homens pudessem aprender uma coisa tão necessária de se saber e que só se pudesse saber por esse meio.

A verdade não se altera senão pela mudança dos homens. No entanto, ele põe as duas coisas mais memoráveis que já se imaginaram, a saber, a criação e o dilúvio, tão próximas que se pode tocá-las, (pelo pouco que ele faz de gerações. De sorte que, no tempo em que escrevia essas coisas, a memória das mesmas devia ainda ser bem recente no espírito de todos os judeus). Sem, que viu Lameque, que viu Adão, viu também Jacó, que viu os que viram Moisés.

Com efeito, o que faz que não sejamos, às vezes, bastante instruídos na história dos nossos antepassados, é que nunca vivemos com eles, pois muitas vezes morreram antes de termos atingido a idade da razão.

[…] naquela época os povos tinham um cuidado particular em conservar as suas genealogias.

É justo que um Deus tão puro só se descubra àqueles cujo coração está purificado.

Artigo VIII — das figuras; que a antiga lei era figurativa

Uma das principais razões pelas quais os profetas velaram os bens espirituais que prometiam sob as figuras dos bens temporais, é que tinham em vista um povo carnal, que era preciso tornar depositário do testamento espiritual.

Na prisão, José inocente entre dois criminosos: Jesus Cristo na cruz entre dois ladrões. José predisse a salvação de um e a morte do outro, sobre as mesmas aparências: Jesus Cristo salva os eleitos e dana os réprobos pelos mesmos crimes.

A figura subsistiu até à verdade […]

Se a lei e os sacrifícios são a verdade, é preciso que agradem a Deus e não que lhe desagradem. Se são figuras, é preciso que agradem e desagradem.

[…] haveria dois adventos: um da miséria, para abaixar o homem soberbo, e outro da glória, para elevar o homem humilhado; e que Jesus Cristo será Deus e homem.

Eis a cifra que São Paulo nos dá: a letra mata; tudo chegava em figuras; era preciso que o Cristo sofresse: um Deus humilhado. Circuncisão do coração, verdadeiro jejum, verdadeiro sacrifício, verdadeiro templo. Os profetas indicaram que era preciso que tudo isso fosse espiritual.

As fontes das contrariedades da Escritura são um Deus humilhado até à morte na cruz, um Messias triunfando da morte por sua morte, duas naturezas em Jesus Cristo, dois adventos, dois estados da natureza do homem.

[…] para entender o sentido de um autor, é preciso conciliar todas as passagens contrárias. Assim, para conciliar a Escritura, é preciso ter um sentido no qual todas as passagens contrárias se acordem.

[…] é em Jesus Cristo que todas as contradições são acordadas.

Quando a palavra de Deus, que é verdadeira, é literalmente falsa, ela é verdadeira espiritualmente.

Artigo IX – De Jesus Cristo

Jesus Cristo, sem bem e sem nenhuma produção fora da ciência, está na sua ordem de santidade.

De trinta e três anos, ele viveu trinta sem aparecer.

Jesus Cristo disse as coisas grandes tão simplesmente que parece que não as pensou; e tão nitidamente, contudo, que se vê bem o que ele pensava a respeito. Essa clareza, junta a essa ingenuidade, é admirável.

Jesus Cristo é um Deus de que a gente se aproxima sem orgulho, e sob o qual a gente se abaixa sem desespero.

Artigo X — Provas de Jesus Cristo pelas profecias

A maior das provas de Jesus Cristo são as profecias.

Deus suscitou profecias durante mil e seiscentos anos;

Era preciso que as quatro monarquias idólatras ou pagãs, o fim do reino de Judá e as setenta semanas chegassem ao mesmo tempo, tudo antes que o segundo templo fosse destruído.

O que Platão não pode persuadir a uns poucos homens escolhidos e tão instruídos, uma força secreta o persuade a cem milhares de homens ignorantes, pela virtude de poucas palavras.

Então, Jesus Cristo vem dizer aos homens que eles não têm outros inimigos senão eles mesmos;

(Em seguida, os apóstolos disseram aos judeus: Ides ser amaldiçoados; e aos pagãos: Ides entrar no conhecimento de Deus.) A isso não se opõem todos os homens por oposição natural da concupiscência, mas ainda todos os reis da terra se unem para abolir essa religião nascente, como fora predito.

Os judeus, matando Jesus Cristo para não recebê-lo como Messias, lhe deram a última marca de Messias. E, continuando a desconhecê-lo, tornam-se seus testemunhos irrecusáveis; e, matando-o e continuando a renegá-lo, realizam as profecias.

Cristo devia ser glorioso, potente, forte e, todavia, tão miserável que não seria reconhecido; que não seria tomado pelo que é; que seria repelido, que seria morto;

[…] ele foi prometido ao primeiro homem logo depois de sua queda);que se acharam homens que disseram que Deus lhes revelara que devia nascer um Redentor que salvaria seu povo; que Abraão veio em seguida dizer que tinha tido revelação de que ele nasceria dele por um filho que teria; que Jacó declarou que, dos seus doze filhos, ele nasceria de Judá; que Moisés e os profetas vieram em seguida declarar o tempo e a maneira de sua vinda; que disseram que a lei que tinham era apenas para esperar a do Messias; que até então ela seria perpétua, mas que a outra duraria eternamente; que assim, sua lei e a do Messias, da qual era ela a promessa, existiram sempre sobre a terra; que, de fato, ela sempre durou; que, enfim, Jesus Cristo veio em todas as circunstâncias preditas. Isso é admirável.

Os profetas misturaram profecias particulares com as do Messias, afim de que as profecias do Messias não fossem sem prova, e que as profecias particulares não fossem sem fruto.

Artigo XI — Diversas provas de Jesus Cristo

Os apóstolos foram enganados ou enganadores. Um ou outro é difícil. Com efeito, não é possível pegar um homem para ser ressuscitado; e a hipótese dos apóstolos trapaceiros é bem absurda.

Se os judeus tivessem sido todos convertidos por Jesus Cristo, só teríamos testemunhos suspeitos; e, se tivessem sido exterminados, não teríamos testemunho algum.

Como é belo ver, pelos olhos da fé, Dario e Ciro, Alexandre, os romanos, Pompeu e Herodes, agirem, sem o saber, pela glória do Evangelho!

A religião maometana tem por fundamento o Alcorão e Maomé. Mas, esse profeta, que devia ser a última espera do mundo, foi predito? E que marca tem ele que não tenha também todo homem que queira dizer-se profeta? Que milagre disse ele próprio ter feito?

Maomé (é) sem autoridade.

Todo homem pode fazer o que fez Maomé: porque ele não fez milagres; ele não foi predito. Nenhum homem pode fazer o que fez Jesus Cristo. Maomé (se estabeleceu) matando, Jesus Cristo fazendo matar os seus; Maomé proibindo que se lesse, os apóstolos ordenando que se lesse.

Artigo XII — Desígnio de Deus de se ocultar a uns e de se descobrir a outros

Mas, os homens se tornam tão indignos disso que é justo que Deus recuse a uns, por causa do seu endurecimento, o que concede a outros por uma misericórdia que não lhes é devida.

Não era, pois, justo que aparecesse de maneira manifestamente divina e absolutamente capaz de convencer todos os homens; mas, não era justo também que viesse de maneira tão oculta que não pudesse ser reconhecido pelos que o procurassem sinceramente. Quis tornar-se perfeitamente cognoscível a estes; e assim, querendo aparecer a descoberto aos que o procuram de todo o coração, e oculto aos que o evitam de todo o coração, tempera seu conhecimento, de sorte que deu marcas de si visíveis aos que o procuram e obscuras aos que não o procuram.

Se aparece uma vez, é sempre; e, assim, só se pode concluir que há um Deus e que os homens são indignos dele.

(O desígnio de Deus é mais aperfeiçoar a vontade do que o espírito. Ora, a clareza perfeita só serviria ao espírito e prejudicaria a vontade).

[…] é igualmente perigoso ao homem conhecer Deus sem conhecer sua miséria e conhecer sua miséria sem conhecer Deus.

[…] os homens são todos, ao mesmo tempo, indignos de Deus e capazes de Deus: indignos por sua corrupção, capazes por sua primeira natureza.

Que dizem os profetas de Jesus Cristo? Que ele será evidentemente Deus? Não: mas que ele é um Deus verdadeiramente oculto; que será desconhecido, que não se pensará que seja ele; que será uma pedra de escândalo contra a qual muitos se chocarão, etc.

[…] a inteligência dos bens prometidos depende do coração, que chama de bem o que ama; mas, a inteligência do tempo prometido não depende do coração; e, assim, a predição clara do tempo, e obscura dos bens, só ilude os maus.

Em lugar de vos lamentardes de que Deus esteja oculto, vós lhe dareis graças por estar tão descoberto, e lhe dareis graças ainda por não estar descoberto aos sábios nem aos soberbos, indignos de conhecer um Deus tão santo.

A genealogia de Jesus Cristo no Antigo Testamento está misturada com tantas outras inúteis que não pode ser discernida.

Não nos acusem mais, portanto, de falta de clareza, pois fazemos profissão disso. Reconheça-se, porém, a verdade da religião na obscuridade mesma da religião, no pouco de luz que temos dela e na indiferença que temos em conhecê-la.

Se a misericórdia de Deus é tão grande que nos instrui salutarmente, mesmo quando ele se oculta, que luz não devemos esperar dele quando ele se descobre?

Artigo XIII — Que os verdadeiros cristãos e os verdadeiros judeus só tem uma mesma religião

Que os estrangeiros serão recebidos por Deus com os judeus, se o amam;

Eu digo que a circuncisão era uma figura que tinha sido estabelecida para distinguir o povo judeu de todas as outras nações

O amor de Deus é recomendado em todo o Deuteronômio.

[…] os bens temporais são falsos e que o verdadeiro bem é estar unido a Deus

Artigo XIV — Não se conhece Deus utilmente senão por Jesus Cristo

Deus é um Deus oculto; e que, desde a corrupção da natureza, ele os deixou (os homens) numa cegueira de que só podem sair por Jesus Cristo, fora do qual toda comunicação com Deus está afastada:

Jesus Cristo é o objeto de tudo e o centro para o qual tudo tende. Quem o conhece, conhece a razão de todas as coisas.

[…] pode bem conhecer-se Deus sem sua miséria e sua miséria sem Deus; mas não se pode conhecer Jesus Cristo sem conhecer ao mesmo tempo Deus e sua miséria.

É uma coisa admirável que nunca um autor canônico se tenha servido da natureza para provar Deus; todos tendem a fazer crer nele: Davi, Salomão, etc., nunca disseram: Não há vazio, portanto há um Deus. Era preciso que fossem mais hábeis do que as mais hábeis pessoas que vieram desde que todos se serviram disso.

Não se entende nada nas obras de Deus se não se toma por princípio que ele quis cegar uns e esclarecer outros.

As provas metafísicas de Deus são tão afastadas do raciocínio dos homens e tão implícitas, que pesam pouco; e, quando isso servisse a alguns, seria apenas durante o instante que vêem essa demonstração; mas, uma hora depois, temem estar enganados.

O conhecimento de Deus sem o da nossa miséria faz o orgulho. O conhecimento da nossa miséria sem o de Jesus Cristo faz o desespero.

[…] não podemos conhecer Jesus Cristo sem conhecer ao mesmo tempo Deus e as nossas misérias,

[…] fora dele, só há vicio, miséria, erros, trevas, desespero, e só vemos obscuridade e confusão na natureza de Deus e em nossa própria natureza. 36

Artigo XV — Pensamentos sobre os milagres

Há os falsos e verdadeiros. É preciso uma marca para conhecê-los; do contrário, seriam inúteis. Ora, não são inúteis, e são ao contrário fundamentos. É preciso que a regra que se nos dá seja tal que destrua a prova que os verdadeiros milagres dão da verdade, que é o fim principal dos milagres.

(Por essa regra, é claro que os judeus eram obrigados a crer em Jesus Cristo. Jesus Cristo lhes era suspeito; mas, os seus milagres eram infinitamente mais claros que as suspeitas que se tinham contra ele. Era preciso, pois, crer nele).

Moisés predisse Jesus Cristo e ordenou que ele fosse seguido. Jesus Cristo predisse o Anticristo e proibiu que fosse seguido.

as três marcas da religião (são) a perpetuidade, a boa vida, os milagres.

[…] a Igreja tem três espécies de inimigos: os judeus, que nunca foram do seu corpo; os hereges, que dele se retiraram; e os maus cristãos, que a dilaceram por dentro.

Havia dois partidos entre os que escutavam Jesus Cristo: uns, que seguiam sua doutrina por seus milagres; outros, que diziam: Ele expulsa os demônios em nome de Belzebu.

Fora dito aos judeus, assim como aos cristãos, que nem sempre acreditassem nos profetas.

Os que não negam nem Deus nem Jesus Cristo não fazem milagres que não sejam seguros.

[…] então, os homens não falando mais da verdade, é a própria verdade que deve falar aos homens.

[…] os que curam por invocação do diabo não fazem um milagre, pois isso não excede a força natural do diabo.

Os jansenistas assemelham-se aos hereges pela reforma dos costumes; mas, vós vos assemelhais a eles no mal.

Artigo XVI — Pensamentos diversos sobre a religião

Começai por lastimar os incrédulos; eles são bastante infelizes.

Toda a fé consiste em Jesus Cristo e em Adão; e toda a moral na concupiscência e na graça.

O coração tem suas razões, que a razão não conhece:

[…] é com razão que amais? É o coração que sente Deus, e não a razão. Eis o que é a fé: Deus sensível ao coração, não à razão.

Há poucos verdadeiros cristãos, e o digo mesmo quanto à fé. Há muitos que crêem, mas por superstição; há muitos que não crêem, mas por libertinagem. Poucos existem entre os dois.

É inútil dizer, é preciso confessar que a religião cristã tem alguma coisa de assombroso!

Há duas maneiras de persuadir as verdades da nossa religião: uma pela força da razão, outra pela autoridade de quem fala. Não nos servimos da última, mas da primeira. Não dizemos: É preciso crer nisso pois a Escritura que o diz é divina; mas, dizemos que é preciso crer por tal e tal razão, que são fracos argumentos, sendo a razão flexível a tudo.

Sem Jesus Cristo, o mundo não subsistiria; pois seria preciso ou que fosse destruído ou que fosse como um inferno.

É preciso que o homem não veja nada absolutamente; é preciso também que não veja bastante para crer que o possui, mas que veja bastante para conhecer que o perdeu: pois, para conhecer o que se perdeu, é preciso ver e não ver; e é precisamente o estado em que está a natureza.

Mas, não é justo que todos vejam a redenção.

A dignidade do homem consistia, em sua inocência, em dominar as criaturas e aproveitar-se delas; mas, hoje, consiste em separar-se delas e sujeitar-se a elas.

Exemplo: Jesus Cristo é Deus e homem. Os arianos, não podendo aliar essas coisas que crêem incompatíveis, dizem que ele é homem: nisso, são católicos. Mas, negam que ele seja Deus: nisso, são hereges. Pretendem que neguemos sua humanidade: nisso, são ignorantes.

Será uma das confusões dos danados ver que serão condenados por sua própria razão, pela qual pretendem condenar a religião cristã.

É preciso julgar o que é bom ou mau pela vontade de Deus, que não pode ser nem injusta, nem cega, e não pela nossa própria, que é sempre cheia de malícia e de erro.

de sorte que não é pelas agitações da nossa razão, mas pela simples submissão da razão, que podemos verdadeiramente conhecer-nos.

Um homem que descobre provas da religião cristã é como um herdeiro que acha os títulos de sua casa. Dirá ele que são falsos e deixará de examiná-los?

Duas espécies de pessoas conhecem um Deus: os que têm o coração humilhado e amam a baixeza, algum grau de espírito que possuam, alto ou baixo; ou os que têm bastante espírito para ver a verdade, alguma oposição que possuam.

Os sábios, entre os pagãos, que disseram que só há um Deus, foram perseguidos, os judeus odiados, os cristãos ainda mais.

Os homens têm desprezo pela religião odeiam-na e têm medo de que seja verdadeira.

Como as duas fontes dos nossos pecados são o orgulho e a preguiça, Deus nos descobriu duas qualidades suas para curá-las: a misericórdia e a justiça.

A verdadeira e única virtude é odiar a si mesmo, pois se é odiável pela própria concupiscência, e procurar um ser verdadeiramente amável, para o amar. Mas, como não podemos amar o que está

[…] fora de nós, é preciso amar um ser que esteja em nós, e que não esteja em nós. Ora, só o Ser universal o é. O reino de Deus está em nós (Lucas, XVII, 21); o bem universal está em nós mesmos, e não somos nós.

Há três meios de crer: a razão, o costume, a inspiração.

Eu creio de bom grado nas histórias cujas testemunhas se fazem degolar.

Só há três espécies de pessoas: umas, que servem Deus, tendo-o encontrado; outras, que se empenham em procurá-lo, não o tendo encontrado; e outras, que vivem sem procurá-lo nem o ter encontrado. As primeiras são razoáveis e felizes; as últimas são loucas e infelizes; as do meio são infelizes e razoáveis.

Os homens tomam, muitas vezes, sua imaginação por seu coração; e julgam estar convertidos desde que pensam converter-se.

Se há um Deus, é preciso amar somente a ele, e não as criaturas passageiras.

Ora, somos cheios de concupiscência: portanto, somos cheios de mal; portanto, devemos odiar-nos a nós mesmos, e a tudo o que nos excita a outro liame que não seja Deus somente.

[…] a tendência para si é o começo de toda desordem, em guerra, em polícia, em economia, no corpo particular do homem. A vontade está, pois, depravada.

(Há uma) guerra intestina do homem entre a razão e as paixões. (Ele poderia gozar de alguma paz) se só tivesse a razão sem paixões… se só tivesse as paixões sem razão. Mas, tendo ambas, não pode existir sem guerra, só podendo ter paz com uma tendo guerra com a outra. Assim, está sempre dividido e contrário a si mesmo.

Tendo feito o céu e a terra sem sentir a felicidade do seu ser, quis Deus fazer seres que conhecessem e compusessem um corpo de membros pensantes,

É preciso amar somente a Deus e odiar somente a si.

Os platônicos, e mesmo Epíteto e seus sectários, acreditam que Deus é o único digno de ser amado e admirado, e desejaram ser amados e admirados pelos homens; e não conhecem sua corrupção.

Deus só observa o interior: a Igreja só julga pelo exterior. Deus absolve logo que vê a penitência no coração; a Igreja, quando a vê nas obras.

A lei não destruiu a natureza, mas a instruiu: a graça não destruiu a lei, mas a fez exercer.

Receio que tenha escrito mal, vendo-me condenado; mas, o exemplo de escritos tão piedosos me faz acreditar no contrário. Não é mais permitido escrever bem, de tal maneira a Inquisição é corrompida e ignorante.

O silêncio é a maior perseguição. Nunca os santos se calaram.

Para fazer de um homem um santo, é preciso que haja a graça; e quem duvida disso não sabe o que é ser santo nem homem.

Todos os homens se odeiam naturalmente entre si. Servimo-nos como podemos da concupiscência para fazê-la servir ao bem público. Mas, é só fingimento, e uma falsa imagem da caridade; pois que, no fundo, é só ódio.

É indigno de Deus juntar-se ao homem miserável; mas, não é indigno de Deus tirá-lo de sua miséria.

A multidão que não se reduz à unidade é confusão; a unidade que não depende da multidão é tirania.

(Que a religião cristã não é única), bem longe está de que isso seja uma razão que faça crer que não é verdadeira, pois que, ao contrário, é o que faz crer que o é.

Ora, quando se trabalha para amanhã e pelo incerto, age-se com razão.

As invenções dos homens vão avançando de século em século. A bondade e a malícia do mundo em geral, também.

A força é a rainha do mundo, e não a opinião; mas, é a opinião que usa da força.

O acaso dá os pensamentos, o acaso os tira; nenhuma arte para conservar nem para adquirir.

Artigo XVII — Conhecimento geral do homem

Que é um homem no infinito?

Pois, enfim, que é o homem na natureza? Um nada em relação ao infinito, tudo em relação ao nada: um meio entre nada e tudo.

Que fará, pois, senão perceber alguma aparência do meio das coisas, num desespero eterno de não conhecer nem seu princípio nem seu fim?

Quando se é instruído, compreende-se que a natureza, tendo gravado a sua imagem e a do seu autor em todas as coisas, estas têm quase a sua dupla infinidade.

Conhecemos, pois, o nosso alcance; somos alguma coisa e não somos tudo.

Os nossos sentidos nada percebem de extremo. Demasiado barulho nos ensurdece; demasiada luz deslumbra; demasiada distância e demasiada proximidade impedem a visão; demasiado comprimento e demasiada brevidade do discurso o obscurecem; demasiada verdade nos assombra:

Demasiado prazer incomoda; demasiadas consonâncias desagradam na música; e demasiados benefícios irritam:

Não sentimos nem o extremo quente, nem o extremo frio. As qualidades excessivas nos são inimigas e não sensíveis: não as sentimos, toleramo-las. Demasiada juventude e demasiada velhice impedem o espírito; instrução demais e pouca demais. Enfim, as coisas extremas são para nós como se não existissem, e nós não existimos em relação a elas: elas nos escapam, ou nós a elas.

Só a comparação que fazemos de nós com o finito nos causa pena.

Como admitir que uma parte conheça o todo? Mas, ele aspirará, talvez, à conhecer ao menos as partes com as quais tem proporção.

Quando se lê depressa demais ou devagar demais, não se entende nada.

Se somos jovens demais, não julgamos bem; velhos demais, também. Se não meditamos bastante nisso, se não meditamos demais, teimamos e encasquetamos. Se considerarmos a nossa obra imediatamente depois de a termos executado, ainda somos bastante prevenidos; se muito tempo depois, não a entendemos mais.

Conhecemo-nos tão pouco que muitos pensam morrer quando estão passando bem, e muitos parecem passar bem quando estão próximos da morte, não sentindo a febre próxima ou o abscesso prestes a se formar.

Artigo XVIII — Grandeza do homem

Censuro, igualmente, não só os que tomam o partido de louvar o homem, como também os que tomam o de o censurar e os que tomam o de o divertir;

Os estóicos dizem: Tornai a entrar dentro de vós mesmos; é ai que encontrareis o vosso repouso: e isso não é verdadeiro. Outros dizem: Saí e buscai a felicidade divertindo-vos: e isso não é verdadeiro. Vêm as doenças: a felicidade não está nem em nós, nem fora de nós; está em Deus, tanto fora como dentro de nós.

A maior baixeza do homem é a procura da glória, mas nisso mesmo está a maior marca de sua excelência;

A grandeza do homem é tão visível que se tira mesmo de sua miséria. Porque ao que é natureza nos animais nós chamamos miséria no homem, por onde reconhecemos que a natureza sendo hoje semelhante à dos animais, ele caiu de melhor natureza que lhe era própria outrora.

Quem se acha infeliz por só ter uma boca? e quem não se achará infeliz por só ter um olho?

A grandeza do homem é grande na medida em que ele se conhece miserável.

Eu posso conceber um homem sem mãos, pés, cabeça, pois é só a experiência que nos ensina que a cabeça é mais necessária que os pés; mas, não posso conceber o homem sem pensamento; seria uma pedra ou um bruto. É, pois, o pensamento que faz é ser do homem, sem o que não se pode concebê-lo.

Não é do espaço que devo indagar minha dignidade, mas da regulação do meu pensamento. Não terei mais possuindo terras. Pelo espaço, o universo me compreende e me engole como um ponto; pelo pensamento, eu o compreendo.

Toda a nossa dignidade consiste, pois, no pensamento. É dai que é preciso nos elevarmos, não do espaço e da duração que não saberíamos encher. Trabalhemos, pois, para bem pensar: eis o princípio da moral.

[…] a ordem do pensamento é começar por si, e por seu autor e seu fim.

Toda a dignidade do homem está no pensamento.

É perigoso fazer ver demais ao homem quanto ele é igual aos animais, sem lhe mostrar sua grandeza. É ainda perigoso fazer-lhe ver demais a sua grandeza sem a sua baixeza. É ainda mais perigoso deixá-lo ignorar ambas. Mas, é muito vantajoso representar-lhe ambas.

À medida que se tem mais luz, mais grandeza e baixeza se descobre no homem.

Os filósofos: assombram o comum dos homens. Os cristãos: assombram os filósofos.

Artigo XIX — Vaidade do homem, imaginação, amor-próprio

[…] queremos na idéia dos outros uma vida imaginária, e nos esforçamos por assim parecer.

A doçura da glória é tão grande que, a alguma ; coisa que se ligue, mesmo à morte, é amada.

A vaidade está de tal forma arraigada no coração do homem, que um soldado, um criado, um cozinheiro, um malandro, se gaba e quer ter seus admiradores; e os filósofos 50 também o querem. E os que escrevem contra (a glória) querem ter escrito bem, e os que o lêem querem ter a glória de o ter lido; e eu, que escrevo isto, talvez tenha essa vontade, e talvez os que me lerem… (também a tenham).

Curiosidade não é senão vaidade. O mais das vezes, não se quer saber senão para falar disso. De outro modo, não se viajaria por mar para nunca dizer nada a respeito, e só pelo prazer de ver, sem esperança de nunca comunicá-lo.

Quem quiser conhecer por completo a vaidade do homem não tem senão que considerar as causas e os efeitos do amor.

Acontece, por isso, que, quando se tem algum interesse em ser amado por nós, evita-se dar-nos um ofício que se sabe nos ser desagradável; tratam-nos como queremos: odiamos a verdade, no-la ocultam; queremos ser adulados, adulamos; gostamos de ser enganados, enganam-nos.

Assim, a vida humana não é senão uma ilusão perpétua; não se faz outra coisa senão enganar-se e adular-se mutuamente.

[…] poucas amizades subsistiriam se um soubesse o que seu amigo diz de si quando ele não está […]

O homem não é, pois, senão disfarce, mentira e hipocrisia, quer em si mesmo, quer em relação aos outros. Não quer que se lhe diga a verdade, evita dizê-la aos outros; e todas essas disposições, tão afastadas da justiça e da razão, têm uma raiz natural em seu coração.

O tom de voz impõe aos mais sábios e muda um discurso e um poema de face.

Artigo XX — Fraqueza do homem; incerteza de seus conhecimentos naturais

O homem não é senão um sujeito cheio de erro natural e indelével sem a graça.

Os sentidos enganam a razão com falsas aparências;

[…] as paixões da alma perturbam os sentidos e lhes causam impressões falsas: mentem e se enganam mutuamente.

As impressões antigas não são as únicas capazes de nos iludir: os encantos da novidade têm o mesmo poder. Dai provêm todas as disputas dos homens, que se recriminam, ou por se deixarem levar por falsas impressões da infância, ou por seguirem temerariamente as novas.

Temos um outro princípio de erro, as moléstias. Elas nos prejudicam o julgamento e os sentidos. E, se as grandes o alteram sensivelmente, não duvido que as pequenas causem impressão em sua proporção.

Não é preciso o ruído de um canhão para impedir os seus pensamentos: basta o ruído de um cata-vento ou de uma roldana.

Como é difícil propor uma coisa ao julgamento de outrem, sem corromper o seu julgamento pela maneira de lha propor! Se digo: Acho-o belo, acho-o obscuro ou outra coisa semelhante, induzo a imaginação a esse julgamento, ou, ao contrário, irrito-a.

A coisa mais importante na vida é a escolha de uma profissão. É o acaso que dispõe.

Que cada um examine o seu pensamento, e o achará sempre ocupado com o passado e o futuro. Quase não pensamos no presente: e, quando pensamos, é só para tirar dele a luz para dispor do futuro. O presente nunca é o nosso fim. Assim, não vivemos nunca, mas esperamos viver; e, dispondo-nos sempre a sermos felizes, é inevitável que não o sejamos nunca,

[…] fazemos da eternidade um nada e do nada uma eternidade;

A vontade é um dos principais órgãos da crença: não que forme a crença, mas porque as coisas são verdadeiras ou falsas, segundo a face pela qual são observadas.

A imaginação aumenta os pequenos objetos até encher deles a nossa alma por uma estimação fantástica; e, por uma insolência temerária, diminui os grandes até à sua medida, como falando de Deus.

Se sonhássemos todas as noites a mesma coisa, ela nos afetaria tanto quanto os objetos que vemos todos os dias; e, se um artesão estivesse certo de sonhar, todas as noites, durante doze horas, que é rei, creio que ele seria quase tão feliz quanto um rei que sonhasse, todas as noites, durante doze horas, que era artesão. Se sonharmos todas as noites que somos perseguidos por inimigos e agitados por fantasmas penosos, e se passarmos todos os dias em diversas ocupações, como quando se faz uma viagem, sofrer-se-ia quase tanto como se isso fosse verdadeiro, e se teria receio de dormir como se tem de despertar quanto se teme entrar (realmente) em tais desgraças.

Parece-me que sonho; pois a vida é um sonho um pouco menos inconstante.

As ciências têm duas extremidades que se tocam: a primeira é a pura ignorância natural em que se acham todos os homens ao nascer; a outra extremidade é aquela a que chegam as grandes almas que, tendo percorrido tudo o que os homens podem saber, acham que não sabem nada e se tornam a encontrar nessa mesma ignorância de onde partiram.

Artigo XXI — Miséria do homem

A alma é lançada no corpo para ai fazer uma estadia de pouca duração. Sabe que é apenas uma passagem a uma viagem eterna e que só dispõe do pouco tempo que dura a vida para se preparar.

Só lhe resta muito pouco de que possa dispor. Mas, esse pouco que lhe resta a incomoda tanto e a embaraça de modo tão estranho que ela só pensa em perdê-la.

[…] eu disse muitas vezes que toda a infelicidade dos homens provém de uma só coisa, que é não saberem ficar em repouso num quarto.

[…] só se procuram a conversação e os divertimentos dos jogos porque não se pode ficar em casa com prazer.

[…] se está sem o que se chama divertimento, ei-lo infeliz e mais infeliz que o menor dos seus súditos que brinca e se diverte.

Bem vejo que é tornar um homem feliz desviá-lo da visão de suas misérias domésticas,

[…] será assim também com um rei, e será ele mais feliz ligando-se a esses vãos divertimentos do que à visão de sua grandeza?

[…] deixe-se um rei sozinho, sem nenhuma satisfação dos sentidos; sem nenhum cuidado no espírito, sem companhia, pensar em si inteiramente à vontade; e se verá que um rei sem divertimento é um homem cheio de misérias.

Também a principal coisa que sustenta os homens nos grandes cargos, aliás, tão penosos, é que estão sem cessar desviados de pensar em si.

[…] de fato a felicidade consiste apenas no repouso e não no tumulto;

Assim se escoa toda a vida Procura-se o repouso combatendo alguns obstáculos; e, vencidos estes, o repouso se torna insuportável.

[…] ou se pensa nas misérias que se têm, ou nas que nos ameaçam.

Assim, o homem é tão infeliz que se aborreceria mesmo sem nenhuma causa de aborrecimento, pelo próprio estado de sua compleição; e é tão vão que, sendo cheio de mil causas essenciais de aborrecimento, a menor coisa como um bilhar e uma bola que ele joga bastam para diverti-lo.

Não é preciso mais: o homem, por mais triste que esteja, desde que se possa conseguir que entre em algum divertimento, ei-lo feliz durante esse tempo. E o homem, por mais feliz que seja, se não está se divertindo e ocupado com alguma paixão ou algum divertimento que impeça que o aborrecimento se espalhe, ficará logo aflito e infeliz.

A morte é mais fácil de suportar sem pensar-se nela do que o pensamento da morte sem perigo.

[…] o divertimento nos alegra e nos faz chegar insensivelmente à morte.

Quem não vê a vaidade do mundo é bem vão em si mesmo. Quem não a vê também, exceto jovens que estão todos no barulho, no divertimento e no pensamento do futuro?

Se a nossa condição fosse verdadeiramente feliz, não precisaríamos deixar de pensar para nos tornarmos felizes. Pouca coisa nos consola, porque pouca coisa nos aflige.

Incontinente, sairá do fundo de sua alma o aborrecimento, a melancolia, a tristeza, a aflição, a raiva, o desespero.

Salomão e Jó conheceram melhor e falaram melhor da miséria do homem: um, o mais feliz; e o outro, o mais infeliz; um, conhecendo a vaidade dos prazeres por experiência; o outro, a realidade dos males.

Artigo XXII — Contrariedades espantosas que se encontram na natureza do homem em relação à verdade, à felicidade e a várias outras coisas

Feito para conhecer a verdade, deseja-a ardentemente, procura-a, e, no entanto, quando trata de apreendê-la, deslumbra-se e se confunde de tal sorte que dá motivo para que lhe disputem a posse dela.

Que quimera é, então, o homem? Que novidade, que monstro, que caos, que motivo de contradição, que prodígio! Juiz de todas as coisas, imbecil verme da terra, depositário do verdadeiro, cloaca de incerteza e de erro, glória e escória do universo.

Conhecei, pois, soberbo, que paradoxo sois em vós mesmo. Humilhai-vos, razão impotente; calai-vos, natureza imbecil; aprendei que o homem passa infinitamente o homem, e ouvi do vosso senhor a vossa condição verdadeira que ignorais. Escutai Deus.

Conhecemos a verdade, não somente pela razão, mas ainda pelo coração; é desta última maneira que conhecemos os primeiros princípios, e é em vão que o raciocínio, que deles não participa, tenta combatê-los.

Todos os homens procuram ser felizes: não há exceção. Por diferentes que sejam os meios que empregam, tendem todos a esse fim.

[…] esse abismo infinito só pode ficar cheio de um objeto infinito e imutável, isto é, o próprio Deus.

O nosso instinto nos faz sentir que é preciso procurar a nossa felicidade fora de nós.

A guerra interior da razão contra as paixões fez com que os que quiseram ter a paz se dividissem em duas seitas: uns quiseram renunciar às paixões e tornar-se deuses; outros quiseram renunciar à razão e tornar-se brutos.

Desejamos a verdade, e só descobrimos em nós incerteza. Procuramos a felicidade, e só achamos miséria e morte, somos incapazes de não desejar a verdade e a felicidade, e somos incapazes tanto de certeza como de felicidade.

Se o homem não foi feito por Deus, porque só é feliz com Deus? Se o homem foi feito por Deus, porque é tão contrário a Deus?

Artigo XXIII — Razões de algumas opiniões do povo

[…] o homem é vão pela estima que faz das coisas que não são essenciais.

[…] o povo não é tão vão quanto se diz. E, assim, destruímos a opinião que destruía a do povo.

O povo honra as pessoas de grande nascimento. Os semi-hábeis as desprezam, dizendo que o nascimento não é uma vantagem da pessoa, mas do acaso. Os hábeis as honram, não pelo pensamento do povo, mas por um pensamento mais elevado. Os devotos, que têm mais zelo do que ciência, as desprezam, mau grado essa consideração que as faz honrar entre os hábeis, porque julgam isso por uma nova luz que a piedade lhes dá. Mas, os cristãos perfeitos as honram por uma outra luz superior. Assim vão as opiniões sucedendo-se do pró ao contra, segundo se tem luz.

Assim, a opinião é como a rainha do mundo, mas a força é o seu tirano.

Eis-nos em paz por esse meio: o que é o maior dos bens.

A potência dos reis é fundada sobre a razão e sobre a loucura do povo, e bem mais sobre a loucura. A maior e mais importante coisa do mundo tem por fundamento a fraqueza: e esse fundamento é admiravelmente seguro; pois não há nada mais seguro do que isso, que o povo será fraco; o que é fundado sobre a sã razão é bem mal fundado, como a estima da sabedoria.

Que há de menos razoável do que escolher para governar um Estado o primeiro filho de uma rainha?

[…] a guerra civil é o maior dos males.

Como se explica que um coxo não nos irrite, e que um espírito coxo nos irrite? E que um coxo reconhece que andamos direito, e um espírito coxo diz que somos nós que coxeamos; sem isso, teríamos piedade dele, e não raiva. Epíteto pergunta, com muito mais força, porque não nos zangamos quando nos dizem que somos malucos, e nos zangamos quando nos dizem que raciocinamos mal ou que escolhemos mal. O motivo é que estamos certos de não sermos malucos, e de não sermos coxos; mas, não estamos tão certos de escolher o verdadeiro.

Ser elegante é mostrar a própria força.

O povo tem as opiniões muito sãs: por exemplo, 1) escolher o divertimento e a caça em lugar da poesia: os semi-sábios zombam e triunfam em mostrar com isso a loucura do mundo; mas, por uma razão que não penetram, tem-se razão;

Nota do leitor: Para Pascal a falta de diversão deixa o homem amargurado por olhar muito para si mesmo.

Um homem que se põe à janela para ver os passantes, se eu estiver passando, posso dizer que ele se pôs à janela para ver-me? Não, pois não pensa em mim em particular. Mas, quando gostamos de uma pessoa por causa de sua beleza,, gostamos dela? Não; pois a varíola, que tirará a beleza sem matar a pessoa, fará que não gostemos mais; e, quando se gosta de mim por meu juízo, ou por minha memória, gosta-se de mim? Não; pois posso perder essas qualidades sem me perder. Onde está, pois, esse eu, se não no corpo nem na alma? É como amar o corpo ou a alma, se não por essas qualidades, que não são o que faz o eu, de vez que são perecíveis? Com efeito, amaríamos a substância da alma de uma pessoa abstratamente, e algumas qualidades que nela existissem? Isso não é possível, e seria injusto. Portanto, não amamos nunca a pessoa, mas somente as qualidades82.

Artigo XXIV — Da justiça

Todas as boas máximas estão no mundo; só nos resta aplicá-las. Por exemplo, não duvidamos que seja preciso expor a própria vida para defender o bem público,

É necessário que haja desigualdade entre os homens; isso é verdadeiro, Mas, sendo concedido, eis a porta aberta, não somente à mais alta dominação, mas à mais alta tirania.

[…] o direito tem suas épocas.

[…] um diz que a essência da justiça é a autoridade do legislador; outro, o costume presente, e é o mais certo: nada, seguindo a sua razão, é justo em si; tudo se abala com o tempo.

Quem o reconduz ao seu princípio, aniquila-o.

Eis porque o mais sábio dos legisladores dizia que, para o bem dos homens, é preciso, muitas vezes, enganá-los; e um outro,

verifiquei que a nossa natureza não passava de uma contínua mudança, e não mudei mais desde então; e, se mudasse, confirmaria a minha opinião.

É arriscado dizer ao povo que as leis não são justas; pois ele só lhes obedece porque as julga justas.

Assim como a moda faz a graça, assim também faz a justiça.

A justiça sem a força é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem força é contradita, porque há sempre maus; a força sem a justiça é acusada.

Sem dúvida, a igualdade dos bens é justa; mas, não podendo fazer que seja força obedecer à justiça, fez-se que seja justo obedecer à força; não podendo fortificar a justiça, justificou-se a força, afim de que o justo e o forte existissem juntos, e que a paz existisse, que é o soberano bem.

A tirania consiste em querer ter por uma via o que só se pode ter por uma outra.

A tirania consiste no desejo de dominação universal e fora de sua ordem.

Artigo XXV — Pensamentos diversos

Há vícios que só permanecem em nós em virtude de outros; suprimindo o seu tronco, vão-se como ramos.

Pouco falam de humildade humildemente; pouco da castidade castamente; pouco do pirronismo duvidando.

As belas ações ocultas são as mais estimáveis.

Numa palavra, o eu tem duas qualidades: é injusto em si, fazendo-se centro de tudo; e incômodo aos outros, querendo sujeitá-los: porque cada eu é o inimigo e desejaria ser o tirano de todos os outros.

Eu passara longo tempo no estudo das ciências abstratas, e a pouca comunicação que se pode ter delas me desgostara. Quando comecei o estudo do homem, vi que essas ciências abstratas não lhe são próprias, e que eu me desviava mais da minha condição penetrando-as do que os outros ignorando-as; perdoei aos outros o conhecê-las pouco. Mas, julguei encontrar, ao menos, bastantes companheiros no estudo do homem, que é o verdadeiro estudo que lhe é próprio. Enganei-me. Os que o estudam são ainda menos numerosos do que os que se dedicam à geometria.

Mas, não será que não é ainda essa a ciência que o homem deve ter e que lhe é melhor ignorar para ser feliz?

Quando todos caminham para o desregramento, ninguém parece fazê-lo. Aquele que se detém faz notar o arrebatamento dos outros, como um ponto fixo.

Ora, não nos importamos de não ver tudo, mas não queremos ser enganados;

O que pode a virtude de um homem não deve medir-se por seus esforços, mas pelo que de ordinário ele faz.

Embora as pessoas não tenham interesse pelo que dizem, é preciso não concluir daí, em absoluto, que não mentem; pois há pessoas que mentem simplesmente por mentir.

Gostamos de ver, nas polêmicas, o combate das opiniões; mas, não gostamos, em absoluto, de contemplar a verdade encontrada.

Nunca procuramos as coisas, mas a pesquisa das coisas.

Lamentar os infelizes não é contra a concupiscência, ao contrário; é muito fácil ter de dar esse testemunho de amizade e atrair para si reputação de ternura sem dar nada.

O tempo cura as dores e as querelas, porque mudamos, não somos mais a mesma pessoa. Nem o ofensor, nem o ofendido, são mais eles próprios.

O sentimento da falsidade dos prazeres presentes e a ignorância da vaidade dos prazeres ausentes causam a inconstância.

Quereis que se fale bem de vós? Não o faleis.

A medida que se tem mais espírito, acha-se que há mais homens originais. As pessoas comuns não acham diferença entre os homens.

Formamos o espírito e o sentimento pelas conversações. Assim, as boas ou as más o formam ou o estragam.

Zombar da filosofia é verdadeiramente filosofar.

Ora, o abuso das verdades deve ser tão punido quanto a introdução da mentira.

Tudo o que se aperfeiçoa por progresso perece também por progresso. Tudo o que foi fraco não pode nunca ser absolutamente forte. É inútil dizer: ele cresceu; ele mudou; ele é ainda o mesmo.

A natureza do homem não é ir sempre; tem suas idas e vindas.

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Publicado por Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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