Aristóteles e as Categorias da Beleza
A Estética moderna procura fazer do Belo apenas um dos tipos possíveis de algo mais amplo, que os pós-kantianos chamaram de Estético e que, aqui, chamamos de Beleza. Já examinamos tal problema antes, dando razão àqueles que assim agem; pois não se pode compreender que se confundam sob uma só denominação o Belo, que só desperta sentimentos agradáveis e serenos na sua fruição, e outros tipos de Beleza, como, entre outros, o Trágico, cuja fruição é misturada de sensações de “terror e piedade”, segundo acentuava Aristóteles.
De certa maneira, já foram feitas várias alusões, aqui, a essa necessária fragmentação do campo estético, indispensável para se ter uma visão mais completa da Beleza. Agora, porém, trata-se de definir um ponto de vista para iniciar esse estudo e, depois, de examinar os tipos principais de Beleza, principalmente aqueles realizados pela Arte, que, no trabalho criador, não realiza somente o Belo, mas também o Cômico, o Sublime, o Gracioso e outras categorias da Beleza.
Da mesma maneira que tivemos de apresentar aquelas três opções iniciais para o estudo da Estética, aqui temos de verificar se o problema das categorias da Beleza deve ser colocado em termos objetivos, partindo de uma concepção objetiva da Beleza, ou em termos subjetivos, com fundamento na psicologia do contemplador, nas suas reações perante o objeto estético.
Seja qual for, porém, a atitude que se tome diante desse problema das categorias da Beleza, seja objetivista ou subjetivista a posição de quem se disponha a enfrentá-lo, parece não haver dúvida de que as linhas gerais de sua solução foram sugeridas por Aristóteles. Mesmo os seguidores mais radicais da linha sectariamente psicológica revelam as marcas profundas que, a tal respeito, deixou neles o pensamento aristotélico. A esse respeito, afirma Edgard De Bruyne:
“Examinemos primeiro duas classificações (dos tipos principais de Beleza)… A primeira, parte do Belo (ou da Beleza), e é objetivista. A segunda, subjetivista, reduz tudo ao Estético. Todas duas, no fundo, se inspiram na antiga teoria aristotélica: uma, seguindo-a fielmente, a outra transpondo-a para a ordem psicológica.” (Ob. cit., p. 289.)
Vejamos então o pensamento de Aristóteles sobre as categorias da Beleza, num caminho mais ou menos equivalente, em relação ao campo estético, ao que ele seguiu para a fixação das categorias lógicas com suas correspondentes na realidade. Já lembramos que Aristóteles não deixou um tratado expressamente dedicado a esses assuntos, com exceção daquele que se extraviou e que era dedicado à Beleza. Apenas incidentemente, na Poética, podemos encontrar um ou outro indício para rastrear uma teoria geral sua sobre categorias da Beleza. Para fixá-las, Aristóteles parte de sua definição da Beleza, combinando, primeiro, os elementos de harmonia e desarmonia, com a grandeza e a proporção, e introduzindo, ainda, o elemento da ação para chegar às categorias da Beleza mais realizadas através das artes literárias e teatrais, isto é, o Trágico e o Cômico. No capítulo em que tratamos da teoria aristotélica da Beleza, já mostramos como, para entender a visão que Aristóteles tinha do mundo, tanto era fundamental o conceito de harmonia e de ordem, como o de desordem e desarmonia.
Entendido isso, podemos avançar que Aristóteles definiu ou pressentiu oito tipos especiais e mais importantes, oito categorias da Beleza. Destas oito, quatro são ligadas à harmonia; são elas: o Gracioso, o Belo, o Sublime e o Trágico. As outras quatro, são ligadas à desarmonia, são tipos de Beleza criados a partir daquilo que na Natureza é feio e pertence ao campo da desordem; são elas: o Risível, a Beleza do Feio, a Beleza do Horrível e o Cômico.
Poderíamos, então, organizar um quadro que abrangesse a visão aristotélica do campo estético — ou da Beleza em geral enquanto realizada em suas manifestações principais — da seguinte maneira:
Grandeza | – | ± | + | Ação |
Hormonia | Gracioso | Belo | Sublime | Trágico |
Desarmonia | Risível | Beleza do Feio | Beleza do Horrível | Cômico |
Com exceção da Beleza criada a partir do Feio e do Horrível, pode-se dizer que todos os tipos ou categorias da Beleza aí contidos podem se encontrar tanto na Arte quanto na Natureza; assim como existem tipos de Beleza mais comuns nas Artes chamadas plásticas e outros mais próprios das Artes literárias: o Belo seria uma categoria da Beleza mais comum na Escultura, na Pintura e na Arquitetura, por exemplo, enquanto que o Trágico é mais característico da Epopeia, do Romance ou do Teatro; em qualquer caso, porém, todos eles são maneiras diferentes, peculiares, singulares de realizar a Beleza, são categorias da Beleza.
O Gracioso
Pelo quadro que acabamos de mostrar, pode-se ver, logo, que o Gracioso é aquela forma de Beleza na qual se realiza a Beleza através de pequenas proporções. Já lembramos, antes, que, para Aristóteles, os seres de proporções pequenas e harmoniosas, não podem pertencer ao Belo, que exige uma certa imponência ou majestade. Uma mulher de formas bem-proporcionadas, mas de estatura pequena, pertenceria, segundo Aristóteles, a essa forma especial de Beleza que é o Gracioso, e não ao Belo.
Estendendo o mesmo conceito às Artes, teríamos resultado semelhante; e de fato, comparando-se um quadro realizado em miniatura, um camafeu do século XVIII, por exemplo, com um mural de afresco como o Juízo Final de Miguelângelo, notamos que, tanto num como no outro, a Beleza está realizada: mas o tipo de Beleza realizada num e noutro é bem diferente. O camafeu pertenceria, antes, ao campo do Gracioso, e o Juízo Final ao campo daquele outro tipo da Beleza que Aristóteles chamava o Elevado e que os estetas posteriores e mais modernos denominaram Grandioso ou Sublime, segundo o caso.
O texto no qual existe referência de Aristóteles à diferença entre o Gracioso e o Belo é da Ética a Nicômaco e é o seguinte:
“A magnanimidade é inseparável da grandeza; outro tanto sucede com o Belo, só concebível num corpo elevado; as pessoas de estatura diminuta podem ser graciosas e bem-proporcionadas, nunca porém pertencem ao Belo, no rigor da expressão.” (In Poética, trad. de Antônio Pinto de Carvalho, Edições de Ouro, Rio, s/d, nota na p. 302.)
Chamo, mais uma vez, atenção para o fato de que, comumente, em Português, temos que evitar as ambiguidades de terminologia, causadas pela existência de um só adjetivo, belo, a ser usado em relação a dois termos aqui usados diferentemente, Belo e Beleza: um quadro de Goya é belo, mas não pertence ao Belo, e sim à Beleza, e esse é o motivo de, por motivos de clareza, ter eu uniformizado isso nas citações.
O Risível
Um livro como o Dom Quixote tem uma Beleza bem diferente do Belo realizado numa escultura como a Vênus de Milo, mas tem, indiscutivelmente, Beleza; uma Beleza que não é pura, serena, tranquila e proporcionada, como a do Belo, mas que é criada a partir daquilo que, no comportamento humano, faz parte do vasto campo do Risível. É, então, uma Beleza criada a partir daquilo que, no mundo e no homem, existe de desarmonioso.
Por outro lado, a desarmonia, a feiura, a torpeza, o grotesco, que fazem parte do Risível, não podem entrar, nele, em proporção grande, nem desmesurada, senão sairíamos do campo do riso para entrar noutros, o da Beleza criada a partir do Feio e o da Beleza criada a partir do Horrível. Aristóteles afirma, na Poética:
“O ridículo (risível) é apenas certo defeito (desordem, desarmonia), certa torpeza (ou feiura) anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dor.” (Capítulo V, p. 74.)
Não concordamos com alguns estetas, comentadores e tradutores de Aristóteles que identificam os conceitos de “risível” e “ridículo”. Creio que na terminologia estética da Língua portuguesa, “risível” é o nome geral, que abrange todos os tipos de Artes ligadas ao riso e, portanto, criadoras daquelas formas especiais de Beleza que são o Cômico, o Humorístico, o Ridículo etc. Por outro lado, às vezes, o melhor é repetir a mesma citação em duas traduções diferentes, para que a ideia original apareça melhor. A citação que acabamos de fazer, por exemplo, aparece assim, na tradução de Antônio Pinto de Carvalho:
“O ridículo (risível) reside num defeito e numa tara (desarmonia) que não apresentam caráter doloroso ou corruptor. Tal é, por exemplo, o caso da máscara cômica, feia e disforme, que não é causa de sofrimento.”
De tudo o que aí fica dito, parece-me justo afirmar que Aristóteles entendia o Risível como uma desarmonia de pequenas proporções e que não tivesse consequências dolorosas; ou, como diz Edgard De Bruyne, “uma desarmonia que não é dolorosa”. (Ob. cit., p. 290.)
O Belo
Nas proporções diminutas da grandeza, temos dois tipos de Beleza, um ligado à harmonia — o Gracioso — e outro ligado à desordem — o Risível. Agora passaremos a examinar os dois tipos em que a grandeza é elemento fundamental, o Belo e a Beleza criada a partir do Feio. Nestas duas categorias, a grandeza, a imponência, a majestade, fazem parte da Beleza, mas na justa medida, numa proporção que não é desmesurada, senão caímos no terceiro campo, o do Sublime e o da Beleza do Horrível.
Como já salientamos ao estudar a teoria aristotélica da Beleza, os gregos tinham uma tendência a considerar o Belo como a única forma legítima, ou, pelo menos, a mais legítima de Beleza. Por isso, para entender bem a natureza dessa forma especial de Beleza que é o Belo, voltemos ao texto do capítulo VI da Poética, utilizando, desta vez, a tradução de Antônio Pinto de Carvalho:
“O Belo, num ser vivente ou num objeto composto de partes, deve não só apresentar ordem em suas partes como também comportar certas dimensões. Com efeito, o Belo tem por condições uma certa grandeza e a ordem. Pelo qual motivo, um ser vivente não pode ser (do) belo, se for excessivamente pequeno… nem desmedidamente grande…” (Ob. cit., capítulo VII, p. 302.)
A Beleza do Feio e a do Horrível
Essas formas ásperas e especiais de Beleza, criadas a partir do que, na realidade, é feio e horrível, são apenas sugeridas de passagem, por Aristóteles. Ele se refere expressamente na Poética, às obras de arte que partem daquilo que na Natureza é feio — Beleza do Feio — e até repugnante, em grandes proporções — Beleza do Horrível. É, por exemplo, e para ficar no exemplo citado por ele, o caso de quadros que representem cadáveres em decomposição. Afirma Aristóteles, no capítulo IV da Poética:
“A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distingue-se de todos os outros seres, por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquire seus primeiros conhecimentos, por ela todos experimentam prazer. A prova é-nos visivelmente fornecida pelos fatos: objetos reais que não conseguimos olhar sem custo, contemplamo-los com satisfação em suas imagens mais exatas; é o caso dos mais repugnantes animais ferozes e dos cadáveres.” (Poética, trad. de Antônio Pinto de Carvalho, cit., p. 294.)
Note-se que Aristóteles já acentuava que a Beleza do Feio e a do Horrível eram características da Arte, e não da realidade; tanto assim que ele afirma textualmente que nós podemos sentir prazer em olhar as imagens de objetos reais que na vida olhamos com repugnância: mais uma vez fica provado que Aristóteles pelo menos pressentia que a Beleza devia incluir, não só o Belo, mas também aqueles outros tipos nos quais o artista ou o escritor partem daquilo que na Natureza é feio e repugnante, transfigurando-o nas criações da Arte.
O Sublime e o Trágico
De acordo com Aristóteles, o Sublime tem em comum com a Beleza do Horrível o fato de que ambos pertencem ao domínio do grandioso, das proporções desmesuradas, distinguindo-se, porém, os dois, porque o Sublime é uma forma de Beleza ligada à harmonia e a Beleza do Horrível é ligada à desordem, ao que é feio e repugnante em grandes proporções.
Numa outra ordem de ideias, o Sublime é aparentado com o Trágico, porque ambos despertam “o terror e a piedade”. A distinção entre os dois viria do fato de que, no Trágico, o terror e a piedade são despertados por uma ação, enquanto, no Sublime, o terror e a piedade são despertados “pelo simples pensamento”. Isto significa que o Sublime é uma forma de Beleza mais característica das Artes mais puramente literárias, como a Poesia lírica e a filosófica. Quanto ao Trágico, é mais adequado ao Teatro, ou, quando muito, aos gêneros literários menos “puros”, mais complexos e de ação, como a Epopeia, o Romance e a Novela, nisto aparentados com o Teatro.
Para ser exato, Aristóteles emprega, mais, as expressões de “Elevado” ou “Nobre”, sempre que alude a essa categoria da Beleza que hoje chamamos de Sublime e que sempre aparece, aqui e ali, nas obras de arte ligadas ao Épico, ao Grandioso e até ao próprio Trágico. Mas ele distinguia o Trágico propriamente dito do Elevado, ou Sublime; tanto assim que afirmava que este, por ser de natureza mais intelectual (e não de ação, digamos assim), era assunto mais da Retórica do que dos estudos sobre a Tragédia. Existe um texto da Poética que traz esclarecimentos preciosos a esse respeito, pois, nele, Aristóteles distingue o terror e a piedade suscitados pelo simples pensamento (Sublime) e aqueles suscitados pela ação (Trágico). Diz ele, de acordo com a versão de Eudoro de Sousa:
“Neste caso (o do Trágico) os sobreditos efeitos (de terror e piedade) vêm resultar somente da ação e sem instrutiva advertência, enquanto no primeiro caso (o do pensamento) resultam somente da palavra de quem fala.” (Ob. cit., cap. XIX, p. 102.)
O Cômico
Como acontece com o Trágico, as formas de Beleza que são ligadas ao Risível podem ser realizadas através de uma ação, caso em que obteremos o Cômico. Assim, podemos dizer que, se encarnarmos o Belo e o Sublime numa ação humana, teremos o Trágico, despertando sensações de prazer misturado ao terror e à piedade; e se encarnarmos o Risível e o Feio numa ação também humana, teremos o Cômico. Segundo Aristóteles, o Trágico imita pessoas melhores do que o comum, e o Cômico imita pessoas piores do que o comum:
“Como a imitação se aplica aos atos (ações) dos personagens e estes não podem ser senão bons ou maus (pois os caracteres dispõem-se quase que só nestas duas categorias, diferindo apenas pela prática do vício ou da virtude), daí resulta que os personagens são representados ou melhores ou piores ou iguais a todos nós… A mesma diferença distingue a tragédia da comédia: uma propõe-se imitar os homens representando-os piores, a outra melhores do que são na realidade… A comédia é, como já dissemos, imitação de maus costumes, não contudo de toda sorte de vícios, mas só daquela parte do ignominioso que é o ridículo (o risível).” (Poética, trad. cit. de Antônio Pinto de Carvalho, caps. II e V, p. 291 e 297.)
De modo que, a se deduzir por esses textos, podemos entrever que tal era, em seu conjunto, o campo da Beleza, de acordo, com a visão de Aristóteles. Até que ponto queria ele fazer uma sistematização de tudo isso, é impossível dizer, porque a Poética é um livro constituído apenas por esboços que serviam ao grande pensador grego de roteiro para as aulas, ministradas oralmente. Não importa. Suas notas de aula, elas apenas, são suficientes para colocar o problema da unificação de um ponto de vista geral para encarar as categorias da Beleza e são daquelas contribuições que nos levam a subscrever as palavras que já se disseram a respeito dele: “Se jamais houve uma inteligência maior, nunca outra teve tão nobre oportunidade”.
Ariano Suassuna in Iniciação à Estética, cap. 10
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