Respiga de liberdade é um poema sobre liberdade de expressão, na verdade, sobre a falta da liberdade de expressão. A sextilha abaixo traz, de modo análogo, personagens que buscam liberdade e não encontram, como respigadores que vão ao campo recolher as sobras da colheita e não acham nada. O que antes era seara passa a ser um deserto. Respiga de liberdade é um poema sobre o Brasil de nossos tempos. Em seguida, o poema na íntegra, após o mesmo, uma breve análise por trechos.
Vamos agora a uma breve análise. Recomendo que, depois do exame, o leitor retorne ao poema para uma nova leitura.
Respigadores foram ao campo
Respigar o que restou
Respigadores são pessoas que colhem o que restou de uma colheita. No poema, trata-se de uma referência à lei judaica da respiga (Deuteronômio 24: 19–22). Resumidamente, o agricultor não deveria ceifar completamente os cantos da terra, a fim de que os pobres, estrangeiros, órfãos e viúvas pudessem colher por eles mesmos. O que caía no chão no momento da colheita também deveria ser deixado lá, para ser apanhado pelos desfavorecidos.
Ao campo da liberdade
Onde a chuva não passou
Baldaram a levar os cestos
Pois o nada sobejou
O campo onde foram os respigadores não era um campo de milho ou trigo, era o campo da liberdade. Os pobres respigadores não acharam nada no campo. Levaram cestos em vão, pois voltaram todos vazios. A falta de chuva representa causa e efeito. Representa um processo deficiente. É parte do problema.
Eis que grande é a seara
E os ceifeiros poucos são
Referência a Lucas 10:2. “E dizia-lhes: Grande é, em verdade, a seara, mas os obreiros são poucos; rogai, pois, ao Senhor da seara que envie obreiros para a sua seara.”
A seara de muitas vozes
Foi colhida desde o chão
Competentes são as foices
Não sobrou sequer um grão
Aqui está dado quem é o senhor da seara: são senhores que não se importam com os desfavorecidos, são competentes na opressão, não deixam nada. A foice é, obviamente, referência aos ceifeiros, que usam de tal ferramenta para a colheita, e ao mesmo tempo a um dos símbolos do comunismo, ideologia que inspira grande parte dos opressores da atualidade.
Valha! o campo é um deserto
Em tal seca ali findou
Da raiz amordaçara
O ruído não brotou
Germe algum ali escapa
Do torrão não transpassou
É o momento da total falta de liberdade. A lavoura é deserto. Nada pode germinar. A estrofe inicia com uma interjeição de espanto comum no nordeste: valha”, ou valha-me, Deus!
Ai, meu Deus! a fome veio
E com ela a inanição
E o silêncio na seara
[…]
Chegam os resultados simbólicos da falta de liberdade, a fome, a inanição, o silêncio que é a morte, representado pelas reticências no meio da estrofe. Nelson Rodrigues dizia ser a liberdade mais importante que o pão. A ausência da mesma tira a alegria e a vida dos respigadores, como vemos a seguir:
Bucho vazio não faz canção
Não restou nenhuma voz
Pra fazer uma oraç[…]
O silêncio, isto é, a obrigatoriedade do silêncio, tira a arte do povo, a criatividade, a alegria, a canção. Referência ao dito saco vazio não para em pé. O último verso não se completa, pois chega enfim a morte simbólica, não há rima, não há mais poesia. Não há mais quem cante ou faça oração.
Almondi disse:
Muito bom! Parabéns.
“ego vox clamantis”