Poesia

Respiga de liberdade

Detalhe de As Respigadoras, 1857, Jean-François Millet

Respiga de liberdade é um poema sobre liberdade de expressão, na verdade, sobre a falta da liberdade de expressão. A sextilha abaixo traz, de modo análogo, personagens que buscam liberdade e não encontram, como respigadores que vão ao campo recolher as sobras da colheita e não acham nada. O que antes era seara passa a ser um deserto. Respiga de liberdade é um poema sobre o Brasil de nossos tempos. Em seguida, o poema na íntegra, após o mesmo, uma breve análise por trechos.

Respiga de liberdade

Respigadores foram ao campo
Respigar o que restou
Ao campo da liberdade
Onde a chuva não passou
Baldaram a levar os cestos
Pois o nada sobejou

Eis que grande é a seara
E os ceifeiros poucos são
A seara de muitas vozes
Foi colhida desde o chão
Competentes são as foices
Não sobrou sequer um grão

Valha! o campo é um deserto
Em tal seca ali findou
Da raiz amordaçara
O ruído não brotou
Germe algum ali escapa
Do torrão não transpassou

Ai, meu Deus! a fome veio
E com ela a inanição
E o silêncio na seara
[…]
Bucho vazio não faz canção
Não restou nenhuma voz
Pra fazer uma oraç[…]

Anderson C. Sandes — 26 de jan. de 2023

Vamos agora a uma breve análise. Recomendo que, depois do exame, o leitor retorne ao poema para uma nova leitura.

Respigadores foram ao campo
Respigar o que restou

Respigadores são pessoas que colhem o que restou de uma colheita. No poema, trata-se de uma referência à lei judaica da respiga (Deuteronômio 24: 19–22). Resumidamente, o agricultor não deveria ceifar completamente os cantos da terra, a fim de que os pobres, estrangeiros, órfãos e viúvas pudessem colher por eles mesmos. O que caía no chão no momento da colheita também deveria ser deixado lá, para ser apanhado pelos desfavorecidos.

Ao campo da liberdade
Onde a chuva não passou
Baldaram a levar os cestos
Pois o nada sobejou

O campo onde foram os respigadores não era um campo de milho ou trigo, era o campo da liberdade. Os pobres respigadores não acharam nada no campo. Levaram cestos em vão, pois voltaram todos vazios. A falta de chuva representa causa e efeito. Representa um processo deficiente. É parte do problema.

Eis que grande é a seara
E os ceifeiros poucos são

Referência a Lucas 10:2. “E dizia-lhes: Grande é, em verdade, a seara, mas os obreiros são poucos; rogai, pois, ao Senhor da seara que envie obreiros para a sua seara.”

A seara de muitas vozes
Foi colhida desde o chão
Competentes são as foices
Não sobrou sequer um grão

Aqui está dado quem é o senhor da seara: são senhores que não se importam com os desfavorecidos, são competentes na opressão, não deixam nada. A foice é, obviamente, referência aos ceifeiros, que usam de tal ferramenta para a colheita, e ao mesmo tempo a um dos símbolos do comunismo, ideologia que inspira grande parte dos opressores da atualidade.

Valha! o campo é um deserto
Em tal seca ali findou
Da raiz amordaçara
O ruído não brotou
Germe algum ali escapa
Do torrão não transpassou

É o momento da total falta de liberdade. A lavoura é deserto. Nada pode germinar. A estrofe inicia com uma interjeição de espanto comum no nordeste: valha”, ou valha-me, Deus!

Ai, meu Deus! a fome veio
E com ela a inanição
E o silêncio na seara
[…]

Chegam os resultados simbólicos da falta de liberdade, a fome, a inanição, o silêncio que é a morte, representado pelas reticências no meio da estrofe. Nelson Rodrigues dizia ser a liberdade mais importante que o pão. A ausência da mesma tira a alegria e a vida dos respigadores, como vemos a seguir:

Bucho vazio não faz canção
Não restou nenhuma voz
Pra fazer uma oraç[…]

O silêncio, isto é, a obrigatoriedade do silêncio, tira a arte do povo, a criatividade, a alegria, a canção. Referência ao dito saco vazio não para em pé. O último verso não se completa, pois chega enfim a morte simbólica, não há rima, não há mais poesia. Não há mais quem cante ou faça oração.

Publicado por Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

Um comentário sobre “Respiga de liberdade”

  1. Almondi disse:

    Muito bom! Parabéns.
    “ego vox clamantis”

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