Sobre Poesia

O feio na arte — Ariano Suassuna

Arte Feia e Arte do Feio

Quando abordamos o estudo das fronteiras da Beleza, já esboçamos, de passagem, o problema do Feio, mostrando que nem sempre os artistas eram atraídos pelo Belo, isto é, por aquela forma especial de Beleza que se baseia naquilo que, na Natureza, já é belo e que se caracteriza pela harmonia, serenidade e equilíbrio nas proporções. Dissemos que existem artistas que, pelo contrário, acham as formas mais ásperas do Feio mais expressivas, menos comuns, menos tendentes ao sentimentalismo, à pieguice, à uniformidade e à monotonia.

Mais proximamente ainda, ao tratar dos problemas referentes à imitação da Natureza pela Arte, fizemos referência a um texto da Poética, de Aristóteles, o qual coloca, também, o problema do Feio, dizendo:

“Nós contemplamos com prazer as imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, como, por exemplo, as representações… de cadáveres.” (Poética, ed. cit., cap. VI, p. 71.)

Quer dizer: Aristóteles já se apercebia de que se alguns artistas manifestavam preferência pelo Belo — e para criar a Beleza, partiam daquilo que, na vida e no mundo, já é belo — havia outros que procuravam fundamentar suas obras no que é feio e até repugnante, como, por exemplo, um pintor que pintasse um quadro cujo assunto fossem cadáveres apodrecidos.

Outra coisa para a qual devemos, de início, chamar atenção, é a necessidade de distinguir a Arte “feia” — isto é, a Arte falhada, mal realizada, incaracterística — da Arte “do feio”, isto é, da boa Arte que cria a Beleza a partir do Feio, e não do Belo. Esta é a que interessa à Estética, porque a primeira, a Arte feia, falhada, está, automaticamente, excluída do campo estético. A outra, entretanto, pelo contrário, exerce uma espécie de estranha atração sobre os artistas e o público; e como, de certa forma, essa atração é um enigma, tem sido, ela, objeto de análise pelos pensadores, desde os mais antigos até os contemporâneos.

Teoria Agostiniana da Beleza

Os gregos de orientação platônica excluíam de suas reflexões tanto a Arte feia como a Arte que parte do Feio para construir a Beleza; dentro de seu pensamento é lógico, aliás: se, para eles, a Arte é uma tentativa de aproximação dos arquétipos, dos modelos ideais de todas as coisas, os seres feios devem ser colocados de lado, porque somente os belos refletem com mais intensidade a Beleza ideal, absoluta.

Mas, de modo mais ou menos inesperado, é um pensador de substrato platônico, Santo Agostinho, aquele que primeiro tentou resolver explicitamente o problema da Arte do Feio. Aristóteles só tratou do problema de modo implícito, como acabamos de ver; Santo Agostinho, porém, talvez pelas características peculiares de sua religiosidade, falou dele de modo claro, apresentando uma explicação que, se não resolve inteiramente o problema, tem a vantagem de “legitimar”, digamos assim, a presença do Feio e do Mal, no mundo e nas obras de Arte. Segundo ele, a presença do Feio e do Mal, num e noutras, é legítima, para acentuar e valorizar o Belo e o Bem, através do contraste. Apesar do fundamento platônico de seu pensamento, Agostinho partiu de uma fórmula aristotélica para legitimar a presença do Mal e do Feio nas obras de arte. De fato, os aristotélicos diziam que a Beleza consistia em “unidade na variedade”; uma coisa era bela quando um artista conseguia imprimir unidade a uma variedade de partes. Os pensadores mais tímidos entendiam, porém, que essa “variedade de partes” significava uma “variedade de partes belas”. Agostinho, porém, afirmava que tal fórmula deveria ser aprofundada: uma obra de arte era bela quando um artista dava unidade a uma variedade de partes que, na Natureza, podiam ser belas e feias; as partes feias entrariam como elemento valorizador das belas, e a fórmula aristotélica, “unidade na variedade” deveria ser aprofundada e ampliada a tal ponto que pudesse ser reformulada como “unidade de contrastes”, como “oposição de contrários”. Diz Bernard Bosanquet:

“A variedade correlativa à unidade na Estética formal antiga é aprofundada por Agostinho na oposição dos contrários, que ele considera essencialmente incluída dentro da harmonia do Universo, como num belo canto, ou nas antíteses da Retórica, ou nas partes sombrias de um quadro, que não o afeiam, se estiverem colocadas no lugar devido… A essência dessa teoria estriba-se em reconhecer o Feio como elemento subordinado ao Belo, ao qual serve de fundo para que ele ressalte; contribuindo, porém, para produzir, no conjunto, um efeito que é harmonioso ou simétrico, totalmente ou quase, no sentido tradicional.” (História da Estética, já cit., p. 161.)

A solução agostiniana, apesar de insuficiente, como já veremos, tem ressonância ainda hoje, na Estética contemporânea. M. Nédoncelle, por exemplo, revela a marca que dela recebeu, quando afirma:

“Como é que uma Divina Comédia pode comportar um Purgatório ou um Inferno sem decair da própria Beleza? A esse problema perturbador, é preciso responder que todas as coisas, inclusive o sofrimento e o crime, são chamadas a uma salvação estética. É, mesmo, a única salvação que lhes resta. Pois (incluindo-se o Mal e o Feio na Beleza artística) o império do valor se estende finalmente àquilo que o contraria e faz a feiura colaborar em seu ato. O gênio conduz os seres mais feios e os sentimentos mais ignóbeis em seu impulso. Ele os introduz num conjunto mais vasto, como acordes dissonantes em sua sinfonia. Sustentar que o Mal, sendo particular, realça a excelência ao conjunto, é insuficiente do ponto de vista metafísico, e revoltante do ponto de vista moral, mas consolador e verdadeiro do ponto de vista estético.” (Introduction à l’Esthétique, já cit., p. 44-45.)

Ora, apesar do que diz Nédoncelle, sustentar que o Feio e o Mal só são legítimos para realçar a excelência do conjunto, parece insuficiente até do ponto de vista estético. Como se explicaria, então, a Beleza das obras de arte que se baseiam unicamente no Feio? Como se explica a beleza, não da Divina Comédia, como conjunto, mas a daquela parte mais áspera, baseada unicamente naquilo que é sombrio, feio e repugnante, que é o “Inferno”? No entanto, das três partes do poema imortal de Dante, o “Inferno” talvez seja a mais bela e forte. Se Dante tivesse escrito somente o “Inferno”, seu lugar já estaria assegurado entre os maiores gênios que a Humanidade já produziu; e, no entanto, a beleza do “Inferno” não poderia, mais, ser legitimada como elemento de contraste, como o acorde dissonante destinado a “realçar a excelência do conjunto”.

O Feio no Pensamento Hegeliano

Como se vê, o problema não é fácil. Pelo contrário: oferece tais dificuldades, que alguns pensadores, como Hegel, por exemplo, chegam a negar a possibilidade de virem o Mal e o Feio a se transformar em pontos de partida para a criação da Beleza. Diz ele, falando, na Estética, a respeito do Trágico:

“A feiura do conteúdo permite menos ainda uma Beleza pura da forma. A sofística das paixões pode, por uma pintura verdadeira do talento, da força e da energia do caráter, ensaiar a representação do falso (ou do Feio) sob as cores do verdadeiro (ou da Beleza), mas então ela nos coloca sob os olhos apenas um sepulcro caiado.” (Ob. cit., p. 145.)

Isto significa que, para Hegel, um artista que lança mão do Feio e do Mal como assunto para seu trabalho criador, está apenas revestindo a podridão com uma forma bela, da mesma maneira que um pedreiro recobre com um túmulo bem-construído os cadáveres decompostos que estão no seu interior.

Edgard De Bruyne apresenta sugestões valiosas para a solução do problema, se bem que, de vez em quando, estrague essas sugestões com outras afirmativas que a contradizem, mostrando-se indeciso e mesmo confuso, às vezes, sobre alguns dos pontos-chaves do assunto. Assim, por exemplo, diz ele que o artista, “pela reprodução de cenas repelentes, pretende nos afirmar sua habilidade técnica vitoriosa, mostrando-nos que ele pode tratar tanto o Belo clássico quanto o Feio”. Ora, por um lado, isso reduz a Arte à habilidade técnica, o que é absolutamente falso, e, por outro, não resolve o problema do Feio na Arte; tanto assim que o próprio De Bruyne conclui sua reflexão dizendo: “Mas isto não explica o motivo pelo qual certos artistas se sentem como que forçados a se ocupar (não do Belo) mas antes do fantástico, do estranho e do repugnante.” (Ob. cit., p. 319.) Ao que se deveria acrescentar, talvez, que essa teoria não explica porque a habilidade técnica vitoriosa de mostrar o Feio é bela.

De Bruyne apresenta, ainda, algumas ideias pouco satisfatórias, reflexos de sugestões anteriores, bebidas em Aristóteles, Santo Agostinho e Kant. Quanto a Aristóteles, ele repete aquela ideia de que o prazer proporcionado pela Arte vem da alegria de reconhecer o imitado, de contemplar coisas que a vida comum não nos permite admirar. Quanto a Kant, ele parece ter ficado impressionado com uma ideia pouco eficaz do filósofo alemão sobre o assunto: Kant afirma que o papel principal do Feio como assunto da Arte é mostrar o domínio do gênio sobre o dado sensível feio — o que não explica porque é que o dado sensível, antes feio, passa a ser elemento de Beleza nas criações da Arte. Finalmente, quanto a Santo Agostinho, De Bruyne repete mais ou menos a ideia de que o papel do Feio nas obras de arte é o de fazer brilhar o Belo, pelo contraste. Suas palavras são as seguintes:

“Quando o Feio surge na Arte, é um meio de nos fazer admirar a vitória do gênio sobre o dado, de fazer o Belo brilhar mais, e, sobretudo, de nos fazer captar, de modo intuitivo, o sentido da vida, de contemplar coisas que a vida ordinária não nos permite admirar.” (Ob. cit., p. 319-320.)

O que nos parece excelente, aí, é essa sugestão de que a presença do Feio nas obras de arte nos permite captar, de modo intuitivo, o sentido da vida. De fato, a vida e o mundo não são compostos somente do partes belas, de modo que a Arte que se preocupa unicamente com o Belo é, talvez, mais pura, mas é muito menos forte, complexa e asperamente eficaz do que a Arte do Feio. O que leva De Bruyne a fazer sua melhor reflexão sobre o assunto. Indaga ele, para dar, logo depois, a resposta:

“Por que o Feio nos causa esta singular mistura de sentimentos de horror, de temor, de repulsa, de piedade, de curiosidade? É porque ele nos revela o profundo mistério da nossa realidade complexa, porque ele nos faz sentir, num mistério estranho, o valor da nossa vida, a miséria que nos espreita e que contradiz tão cruelmente nossos desejos, nossas esperanças e nossos pensamentos… Quando o Feio surge na Arte, é um meio de… nos fazer captar de modo intuitivo, o sentido da vida.” (Loc. cit.)

Parece, portanto, que a solução do problema do Feio na Arte tem que partir daquela ideia de representação à qual Aristóteles já se referia e que levou Kant a fazer aquela assertiva que já citamos antes, devidamente completada por Charles Lalo: a Beleza natural é uma coisa bela; a Beleza artística é a bela representação de uma coisa que pode, inclusive, ser feia e repugnante, na Natureza. A Arte do Feio é Arte da Beleza tanto quanto a Arte do Belo, é tão legítima quanto esta última. Diante dessas ásperas formas de Arte que lidam com o Feio, o contemplador experimenta um choque, uma espécie de fascinação misturada de repulsa, e a impressão causada por obras desse tipo é inesquecível. A Arte do Feio como que nos reconcilia com as contradições, os crimes e a feiura da vida, por apresentar tudo isso representado num outro universo em que aquilo que é chaga aparece cicatrizado e domado. Certos artistas e escritores, de espírito mais dionisíaco do que apolíneo, sentem-se atraídos pelo obsceno, pelo grotesco, enfim, por todos esses elementos mais ligados à feiura e à desordem da vida. Ao fazê-lo é porque sentem uma espécie de revolta contra a desordem e um desejo secreto de recriar a vida, restaurando-a em sua integridade inicial. Diante de suas obras, experimentamos um choque, causado pela captação intuitiva de algo direto, violento, primordial e elementar, algo diretamente ligado ao enigma do mundo. Com isso, consegue-se, também, uma correspondência maior entre o universo da Arte e o da realidade, na sua diversidade e no seu imprevisto. E finalmente, com a transfiguração do mal e do feio, atinge-se o subterrâneo da natureza humana e o fundamento de desordem do real, assim colocados diante de nós como uma visão integral do nosso destino, no que tem de belo e bom; mas também no que possui de falhado, de cruel e infortunado.

Ariano Suassuna in Iniciação à Estética, capítulo 22.

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Publicado por Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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