Texto

Aquele que fere: um ensaio sobre a dor

Professor Morteza Katuzian [Menina triste], 1986 (Detalhe)

O que tenho eu nesta vida para cuidar além de algumas feridas? Perguntei-me durante uma de minhas curtas e constantes crises existenciais. Quem não tem uma dessas pelo menos uma vez por semana? Logo me veio à memória algumas leituras que fiz, que tratam sobre a dor, pois quando se fala em feridas abertas se fala em dor — e sofrimento —. Fiz um paralelo entre essas memórias.

Pode ser que soe um tanto nietzschiano — e soa —, mas creio que encontrei um certo sentido na dor. Não tenho como objetivo usar referenciais filosóficos, teológicos… pelo menos não muitas. Não pretendo ser exaustivo sobre o assunto em questão. O objetivo é apenas o registro e a análise de textos mais poéticos e literários. Não busquei ou pesquisei sobre o assunto, visto que este se trata de um documento memorial, daquilo que me lembro a respeito do que já li, e que tem uma temática talvez dolorosa; com o perdão do trocadilho. 

Aquela foi uma noite em que senti muita dor, achei que morreria de agonia. Até que percebi que a expressão “morrendo de dor” pode estar errada, pois em momentos de dor, nos sentimos demasiado vivos, alertas. Isso, creio que absorvi com a leitura de O Velho e o Mar, obra de Ernest Hemingway. Em resumo, havia um velho cubano que há muito não pescava nada. E num dia, decidiu ir para mais longe da costa a fim de pegar alguma coisa. Quando foi surpreendido por um peixe enorme que o arrastou mar a dentro, por dias. O velho não podia puxar a linha com força, do contrário, esta quebraria, era necessário fazer o peixe se cansar. Na segunda noite, se não me falha a memória, o velho estava em seu barco, ainda sendo puxado pelo colossal peixe, e tinha as mãos cortadas pela linha. A noite era silenciosa e muito escura. O velho pensava estar morto, — o cansaço quase o fizera — mas uma coisa o fazia saber que estava, ainda, vivo. Esta coisa era a dor, a dor causada pela linha em suas mãos, e a postura desconfortável.

Era como se a dor o dissesse: você ainda está aqui, meu velho, sinta. Por um momento pude ver a dor como se fosse uma personagem naquela bela história. Afinal, era tão presente, não apenas no sentido físico. Em minha crítica, não colocaria o menino Manolin como personagem secundário, mas sim a dor. Até me arriscaria em dizer que a dor era mais presente na vida do velho Santiago do que a pessoa de Manolin. Diria também que não foi o menino que convenceu o velho a pescar por mais um dia depois de outros 84 dias sem pegar nada. Pois creio que a dor de não pegar nada em 84 dias o impulsionou a sair para pescar por mais um dia. Afinal, o que nos mata é o sentimento de dor, ou o ‘medo’ de senti-la?

Não foi à toa que Nietzsche disse: “A todos com quem realmente me importo, desejo sofrimento, desolação, doença, maus-tratos, indignidades, o profundo desprezo por si, a tortura da falta de autoconfiança e a desgraça dos derrotados.”

Em O Cão Sem Plumas, poema de João Cabral de Melo Neto, é retratada a dor do povo de Recife, em especial, os que dependiam do Rio Capibaribe para sobreviver. O autor escreveu:

O que vive fere.
O homem,
porque vive,
choca com o que vive.
Viver
é ir entre o que vive.

joão Cabral de Melo Neto

Não querendo ser piegas — mas sendo — levanto as seguintes perguntas: quem nunca feriu alguém? Quem não se magoou? Viver é ferir-se, e ferir é chocar-se, e chocar. 

Já fazem alguns anos que li sobre uma síndrome em uma revista popular. Os portadores — casos raríssimos — dessa síndrome não podem sentir dor, são insensíveis fisicamente por algum distúrbio no cérebro. A revista trazia relatos de pessoas que tinham essa síndrome e acabaram falecendo por não sentirem dor. Machucavam-se gravemente e não sentiam, sangravam e não percebiam, adoeciam e não notavam. Por esses motivos, é muito raro um portador desta síndrome viver por muito tempo sem um exaustivo acompanhamento e autovigilância. Lembro-me de histórias de crianças que se engasgavam com sangue, pois mastigavam a língua, e na ausência de dor, não paravam, já que eram muito pequenas e não entendiam o que estava acontecendo. Houveram também casos de morte por choques em tomadas, e lesões ósseas graves.

Como seria viver sem saber o que é dor? Não consigo imaginar. Deve ser muito estranho ver alguém sentindo dor e não entender. Pode ser doloroso não sentir dor… não sentir-se vivo. “Viver é ir entre o que vive”. Uma pessoa que não sente dor seria capaz de compreender — e apiedar-se — da dor alheia? Creio que não. E creio que Mario Quintana concordaria comigo. Ele escreveu:

A felicidade bestializa, só o sofrimento humaniza as pessoas.

Mário Quintana

Pode parecer um pouco fora de contexto tal citação, mas por momento, quero me deter apenas na segunda parte da máxima: “só o sofrimento humaniza as pessoas”. Em seguida, trato da felicidade. 

Reparei que pessoas em estado de êxtase, em momentos demasiado felizes, seja por ocasião de festividade, de grande notícia, ou qualquer dessas vaidades humanas que nos fazem felizes, apieda-se com a dor alheia com muito menos facilidade. É como se a alegria em demasia fizesse esquecer a dor por um tempo, provocando antipatia aos que sofrem. “A felicidade bestializa, só o sofrimento humaniza as pessoas”.

Há muita semelhança entre a máxima citada de Quintana com os versos atribuídos ao rei Salomão, no livro de Eclesiastes, que diz:

Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, pois ali se vê o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração. Melhor é a tristeza do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração. 

Eclesiastes 7:2-3

Já que entrei no campo teológico, vou me estender mais um pouco. É relatado no livro de Gêneses que Deus criou homem e mulher e os colocou num jardim. Disse-lhes que se pecassem morreriam… e pecaram. Claro, não morreram de imediato, contudo, perderam o privilégio de terem uma vida eterna, a morte consequentemente viria depois. Mas não foi apenas isso, não apenas perderam a eternidade. Deus disse à mulher: em dor darás à luz filhos. E ao homem: em fadiga comerás dela [da terra] todos os dias da tua vida […] do suor do teu rosto comerás o teu pão […]. Ao invés de uma morte imediata para aquele casal, o Criador os ofereceu a dor, física e mental. Como um lembrete de que ainda (AINDA) estavam vivos. E cada vez que sentissem dor, ou sofressem, por se chocarem com a vida, saberiam que poderiam estar mortos. A dor os fazia saber que ainda estavam vivos. Ironicamente, a vida viria com dores, dores de parto. Como o próximo autor a ser comentado é Victor Hugor, vou entrar no “espírito” e dizer: talvez a dor tenha algo de divino. Afinal, para os cristãos, a salvação veio pela dor e o sofrimento até a morte do filho de Deus encarnado. 

Imagina só um mundo corrupto, com pessoas recém-pecadoras, prontas para mais pecados e sem conhecerem a dor… Que futuro os aguardaria? Quem sabe, neste momento, onde ofereceu a dor à humanidade, Deus humanizou sua criação. 

Como nem tudo são flores — talvez tudo sejam dores —, há pessoas que, mesmo maduras e bem vividas, não suportam a dor, e a dor pela dor acaba levando ao óbito. Aqui quero comentar a trama de um romance escrito por Victor Hugo, chama-se O Noventa e Três. Nessa obra são relatados, de forma romântica, alguns eventos durante a grande revolução francesa, em 1793. Se você que lê este ensaio vai ler esta obra, recomendo que pule esta parte do texto, pois contarei o final do livro.

Há dois “heróis” no romance: O visconde de Gauvain e o ex-padre Cimourdain. O ex-padre tinha educado o visconde, e era para ele como um pai. Em resumo (grande resumo), ambos guerrearam juntos, lado a lado, mas por motivos morais (é preciso ler a obra para entender) Gauvain liberta o grande vilão da trama — Marquês de Lantenac — que era seu tio. Isso era contra as leis, e o jovem deveria ser julgado pelo comitê, que ironicamente tinha como “chefe” supremo o Cimourdain, seu educador e melhor amigo. Era preciso muito sangue frio e neutralidade naquele julgamento. A pena não poderia ser outra… a temida guilhotina. 

Um homem que amava outro… um amor de pai e filho; agora um julgava o outro à morte. Tremenda foi a dor de Cimourdain. E ao ver passar a lâmina da guilhotina por entre o pescoço de seu ‘amado’, o ex-padre fez atravessar uma bala de pistola em seu peito. Assim termina o romance, com morte gerando a dor, e a dor gerando a morte.

Há poucos dias li um soneto de Luís de Camões. No poema, o eu lírico sentia dor, e por este motivo foi consultar um oráculo para saber como deveria proceder. O oráculo disse que, para ser restituído, deveria ser ferido por quem já o ferira. Entendi que a dor por sobre outra dor pode gerar algum tipo de sentimento que console o momento doloroso, quem sabe o ódio, ou o desprezo. 

Viver é se chocar com a vida… Dor ao nascer, ao aprender, ao falar, ao ouvir, ao perder, e por vezes ao ganhar. Dor até o fim… desde o início. “O que vive fere”. Em toda minha insignificância, com toda a licença poética que me poderia ser oferecida, gostaria de dar um novo sentido à máxima de Descartes e colocar da seguinte forma: firo, logo existo. Afinal, o que tenho eu nesta vida para cuidar além de algumas feridas?

Anderson C. Sandes — Outubro de 2015

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Publicado por Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

2 comentários sobre “Aquele que fere: um ensaio sobre a dor”

  1. Douglas disse:

    Rapaz, que texto magnífico, é como nos trazer à realidade do que é ser humano.

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