Rainer Maria Rilke (1875-1926), poeta nascido em Praga, é um dos autores de língua alemã mais conhecidos no Brasil. Suas obras, que tiveram grande influência sobre mais de uma geração de poetas, vêm sendo publicadas há várias décadas e sempre despertaram muito interesse. Existem, por exemplo, traduções excelentes de textos seus feitos por alguns dos maiores nomes da poesia brasileira, como a versão de Manuel Bandeira para “Torso arcaico de Apolo”, ou de Cecília Meireles para “A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke”, ou as várias versões feitas por Augusto de Campos, que em 1994 publicou uma coletânea de vinte poemas de Rilke e, em 2001, um novo livro no qual acrescentou mais quarenta poemas traduzidos.
Apesar da continuidade do interesse pelo autor, a recepção de Rilke no Brasil se caracteriza por uma duplicidade, que reflete a bifurcação dos caminhos tomados por sua própria poesia. Por um lado, o poeta do inefável, das “legiões de anjos” aos quais se dirige a primeira das Elegias de Duíno; por outro lado, o poeta da precisão do olhar, que descreve a pantera ou a dançarina espanhola nos Novos poemas. No Brasil, foi o primeiro aspecto que suscitou a admiração inicial por Rilke, sobretudo entre os autores da chamada Geração de 45, desencadeando uma espécie de “rilkeanismo” em língua portuguesa. Mas, contrariando essa recepção inicial e corrigindo o que ela tinha de tendenciosa, também os chamados poemas-coisas [Dinggedichte], reunidos sobretudo nas duas partes dos Novos poemas, passaram depois a merecer a devida atenção. O elogio que João Cabral de Melo Neto faz a esse livro nos dois primeiros versos de “Rilke nos Novos poemas”, publicado em Museu de tudo (1975), resume a questão: “Preferir a pantera ao anjo, / Condensar o vago em preciso…”. E, posteriormente, a coletânea feita por Augusto de Campos, na qual está incluído o poema “A pantera” mencionado por Cabral, testemunha essa mudança de foco na recepção, que abrange assim os caminhos diversos trilhados pelo autor de Sonetos a Orfeu.
Além de ter sido um dos grandes poetas do século XX, Rilke escreveu muitos textos importantes em prosa, entre eles seu único romance, Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Nesses textos são reencontrados os elementos que marcaram sua poesia: o aspecto metafísico elaborado como uma visão pessoal da religião nas Histórias do bom Deus, por exemplo; a valorização do aprendizado do olhar sobre a superfície das coisas, teorizada em Rodin, livro que reúne seus dois ensaios sobre o escultor francês, de quem o autor chegou a ser secretário em Paris. No entanto, entre as obras em prosa de Rilke destacam-se também suas cartas, de alta densidade poética, que revelam com clareza, simplicidade e paciência toda a riqueza de seu pensamento, sempre gravitando em torno da criação artística, de suas fontes, experiências e conseqüências. Como poucos escritores, Rilke soube fazer da correspondência com diversos interlocutores, à qual dedicava muitas e muitas horas, um exercício de reflexão e mesmo de criação poética. Esse cuidado e essa dedicação justificaram a publicação póstuma, por parte de algumas das pessoas com quem ele se correspondeu, de várias de suas cartas. Deve ser mencionada, para exemplificar, a correspondência com a célebre intelectual Lou Andreas-Salomé, assim como as Cartas sobre Cézanne, trocadas com a artista plástica Clara Rilke, esposa do escritor.
A beleza da prosa de Rilke e a riqueza de seu pensamento se revelam plenamente nas Cartas a um jovem poeta, destinadas originalmente ao jovem Franz Xaver Kappus, que as publicou em 1929, apenas três anos após a morte de seu interlocutor. As considerações e os conselhos ponderados, em resposta às inquietações do jovem que ambicionava ser poeta, vão muito além da dimensão pessoal, de modo que os textos fazem sentido sem a necessidade de ler as cartas a que eles respondem. Nas palavras de Rilke, escritas há aproximadamente cem anos, brilha e salta a atenção dedicada do poeta observador, seu universo de questões e experiências, a “luz do olhar”, que faz de seu texto uma invocação, como a dos belos versos finais de “Torso arcaico de Apolo”, na tradução de Manuel Bandeira: “Não fosse assim, seria essa estátua uma mera / Pedra, um desfigurado mármore, e nem já / Resplandecera mais como pele de fera. / Seus limites não transporia desmedida / Como estrela: pois ali ponto não há / Que não te mire. Força é mudares de vida”. Fonte da biografia »
Fichamento: Cartas a um jovem poeta, de Rainer Maria Rilke, escritas entre 1903 e 1908. L&PM Pocket, 2006. Tradução de Pedro Süssekind. O método usado no seguinte fichamento é bem simples: citações diretas destacadas e, por vezes, notas minhas sobre tais citações. Fichamento abaixo:
Paris, 17 de fevereiro de 1903
“Não posso entrar em considerações sobre a forma dos seus versos; pois me afasto de qualquer intenção crítica. Não há nada que toque menos uma obra de arte do que palavras de crítica […]” (p. 23)
“As coisas em geral não são tão fáceis de apreender e dizer como normalmente nos querem levar a acreditar; a maioria dos acontecimentos é indizível, realiza-se em um espaço que nunca uma palavra penetrou, e mais indizíveis do que todos os acontecimentos são as obras de arte, existências misteriosas, cuja vida perdura ao lado da nossa, que passa.” (p. 23–24)
“O senhor me pergunta se os seus versos são bons. Pergunta isso a mim. Já perguntou a mesma coisa a outras pessoas antes. Envia os seus versos para revistas.” (p. 24)
“Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) lhe peço para desistir de tudo isso. O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa de sua madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples “Preciso”, então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso.” (p. 24–25)
“Procure, como o primeiro homem, dizer o que vê e vivencia e ama e perde. Não escreva poemas de amor; evite a princípio aquelas formas que são muito usuais e muito comuns: são elas as mais difíceis, pois é necessária uma força grande e amadurecida para manifestar algo de próprio onde há uma profusão de tradições boas, algumas brilhantes.” (p. 25)
Nota do leitor: Evitar no início da carreira os metrôs herméticos da poesia, pois muito exigem do poeta ainda em construção.
“[…] resguarde-se dos temas gerais para acolher aqueles que seu próprio cotidiano lhe oferece; descreva suas tristezas e desejos, os pensamentos passageiros e a crença em alguma beleza […]” (p. 25)
“Caso o seu cotidiano lhe pareça pobre, não reclame dele, reclame de si mesmo, diga para si mesmo que não é poeta o bastante para evocar suas riquezas; pois para o criador não há nenhuma pobreza e nenhum ambiente pobre, insignificante.” (p. 26)
“E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos.” (p. 26)
“Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum outro critério.” (p. 27)
“[…] o criador tem de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou.” (p. 27)
“Mas talvez, depois desse mergulho em si mesmo e em sua solidão, o senhor tenha de renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-lo).” (p. 27)
Viareggio perto de Pisa (Itália), 5 de abril de 1903
“Hoje eu queria dizer apenas mais duas coisas ao senhor. Primeiro, quanto à ironia. Não se deixe dominar por ela, principalmente em momentos sem criatividade. Nos momentos criativos, procure fazer uso dela como de mais um meio para abarcar a vida. Usada com pureza, ela também é pura, e não é preciso envergonhar-se dela.” (p. 30)
“Procure o fundo das coisas: ali a ironia nunca chega.” (p. 30)
“Pois, sob a influência de coisas sérias, ou a ironia o abandonará (se ela for algo ocasional), ou então ela ganhará força (se lhe pertencer como algo inato) e se converterá em uma ferramenta séria […]” (p. 31)
“E a segunda coisa que eu queria dizer hoje é o seguinte: Dos livros que possuo, apenas alguns são indispensáveis, e só dois se encontram sempre entre as minhas coisas, onde quer que eu esteja. Eles também estão perto de mim por aqui: a Bíblia e os livros do grande poeta dinamarquês Jens Peter Jacobsen.” (p. 31)
“Providencie o volumezinho Seis novelas, de J. P. Jacobsen, e seu romance Niels Lyhne, então comece pela primeira novela daquele volume, chamada Mogens.” (p. 31)
“Viva por algum tempo nesses livros, aprenda com eles o que lhe parecer digno de aprendizado, mas sobretudo os ame.” (p. 31)
“Se devo dizer com quem aprendi alguma coisa sobre a essência da criação, sobre sua profundidade e eternidade, só há dois nomes que posso mencionar: o de Jacobsen, do grande poeta, e o de Auguste Rodin, o escultor que não tem igual entre todos os artistas vivos hoje em dia.” (p. 32)
Viareggio perto de Pisa (Itália), 23 de abril de 1903
“Agora o senhor descobrirá Niels Lyhne, um livro das glórias e das profundezas; quanto mais a gente o lê, parece que tudo se encontra nele, do mais leve perfume da vida até o gosto pleno e carregado de seus frutos mais pesados.” (p. 33)
“Posteriormente, o senhor precisa ler o maravilhoso livro sobre o destino e sobre o anseio de Marie Grubbe, além das cartas, das páginas de diário e dos fragmentos de Jacobsen, passando por fim a seus versos […]” (p. 34)
“[…]que fique registrado aqui, desde logo, um pedido meu: leia o mínimo possível textos críticos e estéticos-ou são considerações parciais, petrificadas, que se tornaram destituídas de sentido em sua rigidez sem vida, ou são hábeis jogos de palavras, nos quais hoje uma visão sai vitoriosa, amanhã predomina a visão contrária. Obras de arte são de uma solidão infinita, e nada pode passar tão longe de alcançá-las quanto a crítica.” (p. 35)
“Tudo está em deixar amadurecer e então dar à luz. Deixar cada impressão, cada semente de um sentimento germinar por completo dentro de si, na escuridão do indizível e do inconsciente, em um ponto inalcançável para o próprio entendimento, e esperar com profunda humildade e paciência a hora do nascimento de uma nova clareza: só isso se chama viver artisticamente, tanto na compreensão quanto na criação.” (p. 36)
“Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades de primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e a serenidade, sem preocupação alguma.” (p. 36)
“[…] uma das mais difíceis provações para o criador: ele precisa permanecer sempre inconsciente, desprevenido de suas melhores virtudes, caso não queira tirar delas a inocência e a integridade!)” (p. 38)
Temporariamente em Worpswede, perto de Bremen, 16 de julho de 1903
“Se o senhor se ativer à natureza, ao que há de mais simples nela, às pequenas coisas que quase não vemos e que, de maneira imprevista, podem se tornar grandes e incomensuráveis; se o senhor tiver esse amor pelo ínfimo e procurar com toda simplicidade conquistar como um servidor a confiança do que parece pobre-então tudo se tornará mais fácil, pleno e de algum modo reconciliador para o senhor […]” (p. 42)
“O senhor é tão jovem, tem diante de si todo começo, e eu gostaria de lhe pedir da melhor maneira que posso, meu caro, para ter paciência em relação a tudo que não está resolvido em seu coração.” (p. 43)
“Viva agora as perguntas. Talvez passe, gradativamente, em um belo dia, sem perceber, a viver as respostas.” (p. 43)
“[…] ame a sua solidão e suporte a dor que ela lhe causa com belos lamentos.” (p. 47)
“Alegre-se com seu crescimento, para o qual não pode levar ninguém junto, e seja bondoso com aqueles que ficam para trás, seja seguro e tranquilo diante deles, sem perturbá-los com as suas dúvidas nem assustá-los com uma confiança ou alegria que eles não poderiam compreender. Procure constituir com eles algum tipo de comunhão simples e fiel, que não precise ser alterada à medida que o senhor mesmo se modifica cada vez mais. Ame neles a vida em uma outra forma e seja indulgente com pessoas mais velhas que temem a solidão na qual o senhor tem confiança.” (p. 47–48)
“Evite alimentar aquele drama que sempre existe entre pais e filhos; ele desperdiça muita força dos filhos e consome o amor dos pais, um amor que atua e acolhe, mesmo que não seja compreensivo.” (p. 48)
“É bom, antes de tudo, que o senhor exerça uma profissão, porque isso o tornará independente e o entregará por completo a si mesmo, em todos os sentidos.” (p. 48)
Roma, 23 de dezembro de 1903
“O que é necessário é apenas o seguinte: solidão, uma grande solidão interior. Entrar em si mesmo e não encontrar ninguém durante horas, é preciso conseguir isso. Ser solitário como se era quando criança, quando os adultos passavam para lá e para cá, envolvidos com coisas que pareciam importantes e grandiosas, porque esses adultos davam a impressão de estarem tão ocupados e porque a criança não entendia nada de seus afazeres. E um dia, ao percebermos que suas ocupações são mesquinhas, que suas profissões são enrijecidas e não estão mais ligadas à vida, por que não olhar para eles como uma criança observa algo de estranho, a partir da profundeza do próprio mundo, da amplitude da própria solidão, que é ela mesma um trabalho, um cargo e uma profissão?” (p. 56)
“[…] preste atenção no que surge a partir de dentro e eleve-o acima de tudo o que o senhor percebe em torno. Se um acontecimento mais íntimo é digno de todo o seu amor, é nesse acontecimento que o senhor deve trabalhar de algum modo, sem perder muito tempo nem muito esforço para esclarecer sua posição em relação aos outros homens.” (p. 57)
“Eu sei, a sua profissão é dura e cheia de contradições que o afetam, e eu previa as suas queixas, já sabia que elas viriam um dia. Agora que vieram, não posso tranquilizá-lo, posso apenas aconselhar que pondere se todas as profissões não são assim, cheias de exigências, cheias de animosidade contra o indivíduo, repletas do ódio daqueles que se conformaram, resignados e rabugentos, com sua obrigação insossa.” (p. 57)
“[…] se não há nenhuma comunhão entre os homens e o senhor, procure estar próximo das coisas, que não o abandonarão; ainda lhe restam as noites e os ventos que passam pelas árvores e sobre muitas terras; entre as coisas e os animais, tudo ainda é pleno de acontecimentos em que se pode tomar parte; e as crianças ainda são como o senhor era quando criança, igualmente tristes e igualmente felizes.” (p. 58)
Roma, 14 de maio de 1904
“O senhor pode notar que copiei seu soneto, porque achei que ele é belo e simples, nascido em uma forma na qual se desenrola com tão tranquila sobriedade. São os melhores versos que cheguei a ler de sua parte. E agora lhe dou essa cópia, porque sei que é importante e uma experiência inteiramente nova reencontrar um trabalho próprio escrito com a letra de outra pessoa. Leia os versos como se fossem alheios, então sentirá de maneira mais íntima o quanto são seus… (p. 63–64)
“É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la. Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor.” (p. 65)
Nota do leitor: Como o pequeno príncipe de Antoine de Saint-Exupéry, que apaixonado, sai pelo cosmos em busca de aprender o amor.
“Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar.” (p. 65)
“A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e se unir com uma outra pessoa.” (p. 65)
“O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa […]” (p. 65–66)
“[…] a comunhão é o passo final, talvez uma meta para a qual a vida humana quase não seja o bastante. É aí que os jovens erram com frequência, gravemente: pelo fato de eles (faz parte de sua natureza não ter paciência alguma) se atirarem uns para os outros quando o amor vem, derramando-se da maneira como são, em todo o seu desgoverno, na desordem, na confusão…” (p. 66)
“Então cada um se perde por causa do outro e perde o outro e muitos outros que ainda desejariam surgir.” (p. 66)
“De fato muitos jovens que amam de modo falso, ou seja, simplesmente entregando-se, sem preservar a solidão (a maioria não passará nunca disso), sentem a opressão de um erro e querem, de uma maneira própria e pessoal, tornar vivida e fértil a situação em que se precipitaram.” (p. 67)
Soneto de Franz Kappus
Pela minha vida, sem amargura,
Sem suspiro, vai uma dor sombria.
Dos meus sonhos, a florescência pura
É a bênção de meu mais tranquilo dia.
Às vezes cruza a trilha que acompanho
A grande questão. Sigo assim, frio,
Pequeno, como à margem de um rio
Do qual não ouso medir o tamanho.
Então me vem um lamento, um torpor
Cinza como, nas noites de verão,
Céus em que raro uma estrela se acende.
Minhas mãos tateiam por amor,
Porque gostaria de fazer uma oração
Mas ela escapa à minha boca quente…
Borgeby Gard, Flàdie, Suécia, 12 de agosto de 1904
“Se nos fosse possível ver além do alcance do nosso saber, e ainda um pouco além da obra preparatória do nosso pressentimento, talvez suportássemos as nossas tristezas com mais confiança do que nossas alegrias. Pois elas são os instantes em que algo de novo penetrou em nós, algo desconhecido; nossos sentimentos se calam em um acanhamento tímido, tudo em nós recua, surge uma quietude, e o novo, que ninguém conhece, é encontrado bem ali no meio, em silêncio.” (p. 74)
“Quanto mais tranquilos, pacientes e receptivos formos quando estamos tristes, tanto mais profundo e mais firme o modo como o novo entra em nós, tanto mais fazemos por merecê-lo, tanto mais ele se torna o nosso destino.” (p. 75)
“Voltando ao assunto da solidão, fica cada vez mais claro que no fundo ela não é nada que se possa escolher ou abandonar. Somos solitários. É possível iludir-se a esse respeito e agir como se não fôssemos. É tudo. Muito melhor, porém, é perceber que somos solitários, e partir exatamente daí.” (p. 76–77)
“Não temos motivo algum para desconfiar de nosso mundo, pois ele não está contra nós. Caso possua terrores, são nossos terrores; caso surjam abismos, esses abismos pertencem a nós; caso existam perigos, então precisamos aprender a amá-los. Se orientarmos a nossa vida segundo aquele princípio que nos aconselha a nos aferrarmos sempre ao que é difícil, o que agora nos parece ser muito estranho se tornará o que há de mais familiar e confiável.” (p. 79–80)
“É preciso pensar que acontece algo com o senhor, que a vida não o esqueceu, que ela segura sua mão e não o deixará cair. Por que o senhor pretende excluir de sua vida qualquer inquietude, qualquer dor, qualquer melancolia, sem saber o que essas circunstâncias realizam?” (p. 80)
Furuborg, Jonsered, Suécia, 4 de novembro de 1904
“Que o senhor ganhe mais e mais confiança para aquilo que é difícil, para a sua solidão em meio aos outros. De resto, deixe a vida acontecer. Acredite em mim: a vida tem razão, em todos os casos.” (p. 86)
“Tudo o que o senhor pode pensar a respeito de sua infância é bom. Tudo o que faz do senhor mais do que foi até agora em suas melhores horas é correto. Toda a intensificação é boa, caso esteja em todo o seu sangue, caso não seja embriaguez, nem obscuridade, mas alegria da qual se enxerga o fundo.” (p. 86)
“Sua tendência para a dúvida pode se tornar uma boa qualidade se o senhor a educar. Ela precisa se tornar saber, precisa se tornar crítica. Pergunte a ela, a cada vez que quiser estragar algo seu, por que algo é feio, exija provas dela, teste-a, e o senhor talvez a deixe indecisa e confusa, talvez revoltada. Mas não desista, reivindique argumentos e aja assim, de modo atento e coerente, a cada vez. Dessa maneira chegará o dia em que sua dúvida se converterá de uma destruidora em sua melhor colaboradora […]” (p. 87)
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