Fichamentos e Resenhas

A literatura greco-latina — Otto Maria Carpeaux

Otto Maria Carpeaux (1900–1978), foi um jornalista, ensaísta e crítico literário austríaco naturalizado brasileiro. Nascido Otto Karpfen, filho de pai judeu e mãe católica, estudou Direito e Filosofia em Viena, Ciências matemáticas em Leipzig, Sociologia em Paris, Literatura comparada em Nápoles e Política em Berlim, além de doutorar-se em Letras e Filosofia na Universidade de Viena.

Diante da ascensão de Hitler, combateu a ideologia nazista e a anexação da Áustria pela Alemanha, especialmente em seus livros e em seus artigos para a revista Der Christliche Ständestaat. Em 1938, após a invasão alemã, foi obrigado a refugiar-se, primeiro na Bélgica e, no ano seguinte, no Brasil. Conhecedor de mais de dez línguas, não demorou para dominar a língua portuguesa e firmar-se na imprensa local. O reconhecimento veio logo com os primeiros livros: A cinza do Purgatório (1942), Origens e fins (1943), Perguntas e respostas (1953), Retratos e leituras (1953) e Pequena bibliografia crítica da literatura brasileira (1955). Aclamado por nomes como Aurélio Buarque de Holanda, Graciliano Ramos, Álvaro Lins e Carlos Drummond de Andrade, começou a publicação de sua obra-prima História da literatura ocidental (1958-66), seguida por Uma nova história da música (1958), Presenças (1958), Livros na mesa (1960) e A literatura alemã (1964). Em 1968, deu por encerrada sua carreira literária, para se dedicar unicamente à luta política.

Publicou também: O Brasil no espelho do mundo (1965), A batalha da América Latina (1966), As revoltas modernistas na literatura (1968), 25 anos de literatura (1968), Hemingway (1971) e Alceu Amoroso Lima (1978), além de prefácios, introduções, verbetes de enciclopédia. É considerado um dos maiores críticos literários brasileiros, tendo influenciado toda a sua geração de intelectuais e escritores.

Fichamento: A literatura grego-latina, coleção de bolso História da Literatura Ocidental, editora LeYa, 2012. O método usado no seguinte fichamento é bem simples: citações diretas destacadas e, por vezes, notas minhas sobre tais citações.

Capítulo I: a literatura grega

A literatura grega tão variada com respeito aos metros da versificação, estilos de expressão, gêneros e temperamentos, parece um pouco monótona quanto aos assuntos.

[Homero] O nome de Homero tornou-se sinônimo de poeta. […] Homero é o maior dos poetas. […] Ilíada e a Odisséia eram usadas, nas escolas gregas, como livros didáticos; não da maneira como nós outros fazemos ler aos meninos algumas grandes obras de poesia para educar-lhes o gosto literário; mas sim da maneira como se aprende de cor um catecismo. […] Versos de Homero serviam para apoiar opiniões literárias, teses filosóficas, sentimentos religiosos, sentenças dos tribunais, moções políticas. Versos de Homero citaram-se nos discursos dos advogados e estadistas, como argumentos irrefutáveis. “Homero”: isto significava a “tradição”, no sentido em que a Igreja Romana emprega a palavra, como norma de interpretação da doutrina e da vida.

Nota do leitor: Antes do surgimento da filosofia e o entendimento de que a mesma seria a busca pelo conhecimento, a poesia era a base da educação. Com Sócrates e Platão o embate contra a poesia torna-se mais voraz, com questionamentos acerca do tipo de saber que a poesia proporcionava. O Íon de Platão é um exemplo desse debate. Uma das causas da condenação de Sócrates foi a sua “luta contra os poetas”, dando a entender que o filósofo rejeitava os mitos gregos, a tradição, fruto da poesia, que traziam toda uma religiosidade, a influência dos deuses, etc. O método de Sócrates era oposto à narrativa épica de Homero. Sócrates defendia virtudes diferentes dos poetas, que exaltavam grandes atos de coragem, batalhas sangrentas. O filósofo preferia um combate retórico. Neste ponto, Sócrates é considerado por muitos como um revolucionário, em oposição a posturas mais conservadoras como o comediógrafo Aristófanes. Curiosamente, o maior dos discípulos de Platão, Aristóteles, foi um grande defensor e teórico da Poesia. Podemos considerar tal conflito entre poesia e filosofia normal, pois era momento de “rompimento” ou choque, entre uma forma de conhecimento estabelecido e outra que viria a surgir. Para mais detalhes, recomendo ao leitor deste fichamento o ensaio Poesia e Filosofia de Olavo de Carvalho, Defesa da Poesia de Sir. Philip Sidney e Uma defesa da Poesia de Percy B. Shelley.

“Homero” é o próprio mundo grego. Nasceu com a civilização grega: a língua e o metro, o hexâmetro, nascem ao mesmo tempo. […] a bíblia estética, religiosa e política dos gregos podia transformar-se em bíblia literária da civilização ocidental inteira. (p. 18-27)

[Hesíodo] Homero parece situado fora do tempo. Em comparação, Hesíodo11 já é poeta de uma época histórica, se bem que primitiva. A Teogonia revela crenças religiosas pré-homéricas: a narração das cinco idades da Humanidade, da idade áurea até a idade do ferro, está imbuída de um pessimismo pouco homérico, e os mitos do caos, da luta dos deuses, dos gigantes, de Prometeu e Pandora, cheiram ao terror cósmico, próprio dos povos primitivos. […] Os Trabalhos e os Dias, a outra obra de Hesíodo, é uma espécie de poema didático, que estabelece normas de agricultura, de educação dos filhos, de práticas supersticiosas na vida cotidiana. […] Hesíodo não é um produto da decadência; é o Homero dos proletários, é o reverso da medalha. (p. 27-28)

Nota do leitor: Deixo aqui um link [clique aqui] de resenhas da obra completa de Hesíodo. As resenhas foram feitas originalmente para o Grupo de Leitura do Movimento Brasil Conservador.

[A poesia lírica] Os nossos conhecimentos da poesia lírica grega são precários. […] a poesia lírica grega estava intimamente ligada à música; e da música grega não podemos formar idéia. […] Píndaro, o único poeta lírico grego cuja obra se conservou; por este e outros motivos convém estudá-lo separadamente.

A poesia lírica grega era, ao que parece, mais uma explosão violenta, “dionisíaca”, do que mera expressão emocional. Por isso, os filósofos e políticos da Antiguidade preocuparam-se com os efeitos perigosos do individualismo literário […] Píndaro tornou-se paradigma da inspiração divina na poesia, quase exemplo de profeta-poeta. (p. 28-33)

[O teatro grego] O teatro grego é de origem religiosa; nunca houve dúvidas a esse respeito. As tragédias – e, em certo sentido, também as comédias – foram representadas assim como se realizam festas litúrgicas. […] a tragédia grega nasceu de atos litúrgicos do culto do Dioniso. […] O teatro grego é mais retórico e mais lírico do que o moderno. Os discursos extensos, que os gregos não se cansavam de ouvir, seriam insuportáveis para o espectador moderno, que prefere, a ouvir discursos, ver e viver a ação. […] acompanhada, como sempre, de música, de modo que a representação de uma tragédia grega se assemelhou, por assim dizer, às nossas grandes óperas. […] a tragédia grega era uma discussão parlamentar na qual se debatia, lançando-se mão de todos os recursos para influenciar o público, um mito da religião do Estado. […] O verdadeiro fim do teatro grego — assim reza a tese sociológica — era a sanção duma modificação da ordem social por meio de uma reinterpretação do mito. (p. 36-38)

[Ésquilo] O sentido profundo do teatro grego revela-se em Ésquilo. […] Ésquilo é poeta duma época na qual religião e política, Estado e família se confundem, porque os elementos dessa equação ainda têm feição arcaica. […] Nada se modifica no mundo humano sem modificação correspondente no mundo divino; o Estado precisa da sanção religiosa dos seus atos, e é o teatro que lhe permite o uso dinâmico dos mitos para sancionar a nova ordem social.

Nota do leitor: aqui podemos ver a poesia como mediadora entre os deuses e os homens, modificando ordem social sempre que conveniente certas releituras dos mitos.

A linguagem de Ésquilo exprime com poder igual os horrores do abismo noturno do caos e a ordem severa das colunas dóricas. Não falam indivíduos pela boca dos seus personagens, e sim céus e infernos, raças e eras. É como se falassem montanhas e continentes. […] Ésquilo fala por todos; mas é indivíduo, o primeiro grande indivíduo da literatura universal. (p. 38-40)

[Eurípedes] Eurípides não pertence ao “partido” religioso-político de Ésquilo […] Aristófanes considerava Eurípides como espírito subversivo, como corruptor do teatro grego e o fim da tragédia ateniense.

Nota do leitor: aqui vemos que, assim como na filosofia, na poesia não havia “corporativismo”, poetas discordavam entre si quanto ao método, estilo e mensagem da poesia. O pensamento de Aristófanes sobre sua preferência por Ésquilo e repúdio a Eurípedes está bem representado na comédia As Rãs.

[Ésquilo X Eurípedes]

Ésquilo parecia ser representante do conservantismo religioso, e Eurípides, representante do individualismo filosófico. […] Ésquilo é coletivista; Eurípides, individualista. Mas o tema dos dois dramaturgos é o mesmo: a família. Ésquilo e Eurípides são, ambos, inimigos da família: Ésquilo, porque ela se opõe ao Estado; Eurípides, porque ela violenta a liberdade do indivíduo.

E se a intolerância religiosa, pela qual a democracia ateniense se distinguia, pretendeu privá-lo desse direito, Eurípides pôde então responder: não fui eu quem derrubou os valores tradicionais, e sim o vosso Estado. A moral tradicional já estava ameaçada pela democracia totalitária.

[Eurípedes] Eurípides comove. É poeta lírico como aqueles poetas líricos gregos cujas obras se perderam – o seu individualismo suspeito reside na sua poesia. […] Eurípides é o primeiro poeta que exprime a alma do homem, sozinho no mundo, fora de todas as ligações religiosas, familiares e políticas, sozinho com a sua razão crítica e o seu sentimento pessimista, com a sua paixão e o seu desespero. É “o mais trágico dos poetas”. (p. 41-45)

[Aristófanes] Píndaro é estranho. Aristófanes26 é mais estranho ainda, a ponto de não encontrar nenhum eco em nossas literaturas. Não há termo de comparação. Até em época de liberdade completa de imprensa e do teatro, não se conheceu entre nós a alta comédia política […] a política é o tema de Aristófanes, mas não a essência da sua arte.

De todos os assuntos, Aristófanes vê só o lado político: Eurípides aparecendo, em As Rãs, pessoalmente, no palco, é o corruptor daquela venerável instituição política que era o teatro, e Sócrates, em As Nuvens, é o corruptor de outra instituição do Estado totalitário ateniense, da educação.  

Aristófanes é conservador: o seu ideal é a identificação de Estado e Religião, como em Ésquilo; de corpo e espírito, como em Píndaro. Odeia o espiritualista Sócrates e o individualista Eurípides. Se eles vencessem, a tirania da Cidade, nas mãos desses homens desequilibrados, seria pior ainda. O homem decente, o conservador que gosta das letras, da boa vida e da ordem tradicional, já não sabe como salvar-se; porque a “cidade nas nuvens”, sonho dos demagogos, não existe.

Aristófanes não é profundo. Não tem ideologia bem definida. O seu conservantismo é um tanto sentimental, elogiando os “bons velhos tempos” e denunciando o “modernismo” perigoso dos “intelectuais” e dos “socialistas”. […] Aristófanes não defende uma ideologia, e sim o sentimento moral, ofendido, de um burguês decente, embora de expressão indecentíssima. Pois também nunca se ouviu poeta tão francamente obsceno, chamando todas as coisas pelos nomes certos.

Aristófanes usa sua “liberdade de imprensa” até contra os deuses, escarnecendo implacavelmente as pobres divindades que não sabem defender a ordem dos “bons velhos tempos” contra demagogos e dramaturgos. Os deuses de Aristóteles são politiqueiros, demagogos e prostitutas, assim como os seus representantes na Terra. […] É, à sua maneira, poeta tão grande como Ésquilo, dominando todas as modulações, desde a música celeste até a graça obscena. O seu lirismo já foi comparado ao de Shelley. […] Aristófanes já é, no seu tempo, reacionário condenado. (p. 45-48)

Nota do leitor: Deixo aqui um link [clique aqui] de resenhas da obra completa de Aristófanes. As resenhas foram feitas originalmente para o Grupo de Leitura do Movimento Brasil Conservador.

[Sófocles] Sófocles representa a tentativa de mediar entre os extremos […] Sófocles foi sempre o poeta preferido dos partidários do equilíbrio puramente estético: dos classicistas.

Sófocles, tudo é harmonia, sem que fosse esquecido uma só vez o fundo escuro da nossa existência. Sófocles é humanista. Mas não é um humanismo satisfeito e suficiente, porque o humanismo grego nunca se esquece da precariedade do mundo, pela possível ira dos deuses, nem da tristeza deste mundo que nos impõe o silêncio piedoso no fim da tragédia. (p. 48-50)

[A historiografia grega] [Heródoto] O “humanismo” da literatura grega não significa guarda de tradições culturais e sim a capacidade de intervir na vida; é comparável ao “lugar na vida” pelo qual os folcloristas modernos classificam o conto de fadas, a lenda, a parábola e outros gêneros semelhantes da literatura oral. O “lugar na vida” da epopéia homérica encontra-se na interpretação da vida; o “lugar na vida” da poesia grega encontra-se na disciplina musical das emoções; o “lugar na vida” do teatro grego encontra-se na reinterpretação do mito; o “lugar na vida” da historiografia grega encontra-se, assim como o da filosofia, em interesses políticos, e está determinado pela retórica.[…] e até nas obras de historiografia inseriram discursos inventados; a retórica era considerada discípula principal da educação superior, e enfim foi identificada com a própria cultura.

Nota do leitor: “lugar na vida” é como que a finalidade prática, a função e a consequência de algo na vida de um povo.

O gosto dos gregos pela retórica é, para nós outros, um fenômeno algo estranho: não se cansaram de ouvir discursos, inúmeros e intermináveis, na assembleia e perante o tribunal; de discursos metrificados encheram as tragédias, e até nas obras de historiografia inseriram discursos inventados; a retórica era considerada discípula principal da educação superior, e enfim foi identificada com a própria cultura.

Na obra de Heródoto encontram-se insertos numerosos contos, lendas, narrações folclóricas, em que revela a arte consumada dum grande novelista; narra sem comentários morais nem explicações psicológicas os acontecimentos fabulosos, que parece aceitar como verdade histórica.

[…] há tantos povos no mundo, com costumes tão diferentes – e no entanto a fé mais ardente e a civilização mais rica não os protegerão contra a decadência política […] nunca um grego pensou em escrever a história de épocas ou povos sem relação direta com a sua própria época e a sua própria cidade. (p. 50-53)

[Platão e a utopia] Com os sofistas e Sócrates, a filosofia torna-se “retórica”, isto é, analisa a composição dos fatos morais, cujo fim último é a moralização das almas; “salvação” que parece religiosa e que se enquadra na renovação do mito. O mito — Platão é o maior criador de mitos na literatura universal — é o fundamento da Cidade grega. Os diálogos de Platão constituem um mundo completo como nenhum outro poeta — além de Dante — criou.

Nota do leitor: Para Carpeaux (e para Shelley) o estilo de Platão é poético, apesar do mesmo condená-lo. Platão criou um mundo em sua filosofia/literatura, uma utopia, e parecia acreditar nesse mundo. A forma que Platão utilizou para registrar a sua filosofia, os diálogos, é artística, é poética, como peças de teatro.

Os mitos platônicos são criações poéticas em cuja realidade o seu autor acreditava; correspondem àquelas invenções na Divina Comédia que não têm base no dogma ou nos axiomas da filosofia tomista, e que, no entanto, representam a realidade florentina que Dante encontrou no seu outro mundo. Tampouco os mitos platônicos são axiomas filosóficos; por isso, Platão os expôs em diálogos de índole literária, dramática, com a pretensão de criar uma Cidade e talvez uma religião, mas sem a pretensão de defender um sistema filosófico. Nunca, na Antiguidade, os diálogos de Platão foram citados como obras de filosofia racional. O grande criador de fórmulas filosóficas entre os gregos foi Aristóteles, do qual não pode tratar a história da literatura, porque — ao que parece — todas as suas obras literariamente elaboradas se perderam, ficando-nos apenas cadernos de notas e aulas. Os mitos de Platão são antes metáforas poéticas, às quais a posteridade atribuiu correspondência com realidades superiores. A atividade de Aristóteles parece principalmente um esforço de corrigir, segundo as experiências empíricas e conclusões lógicas, os “erros” de Platão: o equívoco do “platonismo”.

Pois Platão é poeta. […] A origem da poesia platônica talvez fosse casual; a dramaturgia do diálogo seria — como o estilo coloquial de Platão revela — a transformação artística das conversas filosóficas que Sócrates inventara para refutar os sofistas e expor, de maneira dialética, os seus próprios conceitos. […] Há em Platão as ambigüidades que caracterizam, segundo Coleridge, a poesia.

Platão, porém, era essencialmente poeta. Mais poeta do que filósofo, porque a mera “compreensão” não o deixou satisfeito. (p. 54-58)

Nota do leitor: Nas palavras de Shelley: “Platão era essencialmente um poeta — a verdade e o esplendor de suas imagens, assim como a melodia de sua linguagem possuem uma intensidade tão grande quanto se possa conceber.” — Percy B. Shelley in Uma Defesa da Poesia.

[Demóstenes] Demóstenes35 não tem “boa imprensa”. A divulgação menor e as maiores dificuldades da língua grega em comparação com a latina criaram a preferência compreensível dos séculos por Cícero; mas em outro sentido também o orador grego foi menos compreendido. […] Demóstenes foi condenado como reacionário. Os filólogos, porém, não ousaram dar o último passo: condenar-lhe o estilo. Toda a Antiguidade grega está cheia de elogios ao estilo de Demóstenes, combinação perfeita da simplicidade convincente de Lísias e da arte elaborada de Isócrates, estilo de um homem possuidor do equilíbrio sublime de um herói de Sófocles; estilo de último herói da tragédia de Atenas.  

[…] Demóstenes era anti-imperialista. Os planos de expansão oriental preocupavam-no menos do que o nível ético e político da civilização grega. […] Demóstenes foi modelo confessado dos dois Pitts, de Burke, Fox, Sheridan, Canning e Brougham. Para compreender Demóstenes, é preciso respirar, num dia de grande debate sobre política exterior, o ar da Casa dos Comuns. Mas na prosa dos oradores ingleses não ressoarão, como em Demóstenes, os acordes sombrios que acompanharam o coro final da tragédia grega. […] Depois do suicídio de Demóstenes, a retórica grega já não terá sentido. (p. 59-61)

[Menandro] A Grécia daquele tempo já não é o centro do mundo. As suas cidades estão ainda cheia de rumor levantino, e nas suas escolas ainda se conserva a arte e o pensamento dos antepassados. Mas este tesouro já não cresce e aquele rumor já não tem sentido político. A vida torna-se burguesa. Os cidadãos são comerciantes abastados e os seus filhos constituem uma jeunesse dorée, ocupada em aventuras amorosas com escravas. A vitória esportiva, que Píndaro cantara, é substituída pela vitória sobre o pai: cumpre arrancar-lhe, com a ajuda de um escravo astuto, o dinheiro para comprar a “pequena”. Eis o mundo do comediógrafo Menandro, representante principal da “comédia nova”, ao lado de Filêmon, Dífilo e Apolodoro.

Não é fácil formar idéia bastante clara da arte de Menandro. Durante muito tempo só se conheciam as suas famosas sentenças, conservadas como citações em outros autores, máximas de uma sabedoria pacatamente burguesa. (p. 62)

[Plauto] A comédia de Plauto já não pertence à civilização grega, e sim à romana, que gerou a latina moderna e por isso está incomparavelmente mais perto de nós […] Dos temas de Plauto vive todo o nosso teatro popular. Plauto é um dos autores mais influentes da literatura universal.

Fala a língua do povo, não a dos literatos […] Ao mesmo tempo, esse gênio da gíria dispõe de inesperada riqueza de metros complicados, de modo que a relação entre o verso plautino e a poesia grega constitui objeto de estudos importante […] (p. 62-64)

[Terêncio] A glória universal de Terêncio é pouco menor: mas perturba menos os filólogos […] Terêncio fala como o “epistolário universal dos enamorados” e o seu latim é muito bom. Por tudo isso, Terêncio é, desde os conventos beneditinos da época de Carlos Magno até os colégios humanísticos dos jesuítas e jansenistas, o autor preferido da escola. […] Terêncio sabe dizer tudo em tom de conversa polida; transforma as obscenidades plautinas em problemas psicológicos sérios […] Terêncio é o comediógrafo da aristocracia romana, quando já bastante grecizada. […] É pena que Terêncio já não seja lido nas escolas. (p. 64-65)

[Calímaco] [Poesia Alexandrina] […] última época da poesia grega, a “alexandrina”, poesia erudita e livresca, o que não exclui, aliás, certa independência do espírito poético, nem sequer o sentimento pessoal. O maior poeta alexandrino foi Calímaco41 do qual temos obras em número suficiente – elegias, epigramas, hinos – para poder apreciá-lo como poeta notável […] sua teoria poética lembra, a uma distância de mais de dois milênios, a de Edgar Allan Poe. Mas Calímaco já é menos poeta original do que humanista.

O humanismo moderno é um ideal; o humanismo grego é realidade; e a diferença baseia-se no fato de que o conceito da realidade é mais amplo nos gregos, compreendendo também as realidades criadas pelo espírito humano. (p. 65-66)

[Teócrito] O grego não conheceu romantismo; quando pretendeu evadir-se do mundo ideal da “Cidade”, já agonizante, tornou-se realista bucólico, como Teócrito. E esse realismo só se transformaria em evasionismo quando aquele mundo ideal já não existia. Teócrito ainda se encontra num ponto crítico: o grego começa a perder o contato com a realidade no momento em que parece tê-la atingido.

Teócrito é o poeta da Sicília grega. O espírito da Odisséia renasce nos seus idílios.  […] Teócrito consegue transfigurar a realidade trivial em encantadora música verbal, uma poesia de melancolia erótica. Ezra Pound considera Teócrito como um dos maiores poetas de todos os tempos. (p. 66-68)

[O fim da realidade grega] [Plutarco] Enfim, com a perda definitiva da realidade grega, vencerá o elemento romanesco. Surge um novo gênero: o romance de aventuras. A mais célebre dessas obras foi, durante séculos, as Histórias Etiópicas de Theagenes e Chariclea, de Heliodoro.

O mundo ideal dos gregos só existia em função da realidade material. Quando a realidade material dos gregos desapareceu, o espírito grego prendeu-se à realidade romana, explicando-a duma maneira idealista de que os próprios criadores dessa realidade não eram capazes.

Políbio, o grande historiógrafo, pretende explicar por que os romanos venceram o mundo. A pergunta é pragmática, no melhor estilo de pensar de Heródoto e Tucídides. A resposta, porém, é diferente. O mundo já não se limita às pequenas cidades da Iônia, Ática e do Peloponeso.  

Dois séculos e meio depois, Plutarco cria a biografia; agora já é só o indivíduo que importa. Plutarco é — o que Políbio não foi — um grande artista da narração; sabe caracterizar à maravilha, de modo que, de todas as figuras da Antiguidade, só as que ele biografou se transformaram em personagens tão reais como Don Quixote, Hamlet ou Napoleão. […] Plutarco legou ao mundo moderno a última atitude do homem grego. (p. 68-69)

Capítulo II: o mundo romano

A obra capital da literatura romana é o Corpus Juris. Desaparecera o Império político-militar dos romanos sobre o mundo mediterrâneo-ocidental, da África até a Britânia. Mas a dominação romana subsiste no fundo da consciência política, na linguagem dos parlamentos e tribunais, nos conceitos da jurisprudência e na organização da Igreja Romana.

[A qualidade da literatura romana] [A realidade romana] A literatura romana, apesar de ter produzido grandes poetas e grandes prosadores, parece de segunda mão. A comédia romana já se nos revelou como reflexo da comédia nova ateniense, e a tragédia de Sêneca será reflexo da tragédia de Eurípides. Os poetas líricos romanos imitam Teógnis, Alceu e Safo; Virgílio seria a sombra de Homero; os retores e historiógrafos acompanham os métodos gregos; os filósofos romanos procuram, como ecléticos, um caminho de compromisso entre as discussões das escolas de Atenas e da Ásia Menor. Em geral, é uma literatura de imitação.

A civilização grega continuou sempre algo de alheio, quase exótico, ao passo que a civilização romana, com a qual temos em comum poderosas instituições jurídicas e religiosas, ainda faz parte da nossa. […] Os literatos romanos já são humanistas no sentido moderno da palavra. A separação entre os escritores romanos e a realidade romana tem contaminado a nossa própria civilização inteira.

O espírito grego cria as suas realidades: Estado e poesia, religião e teatro estão no mesmo plano; a distinção entre realidade material e realidade espiritual, para o grego, não tem sentido. A realidade romana é construção em material dado. É realidade econômica, política, jurídica, administrativa. O romano não criou o seu mundo; encontrou-o, dominou-o, continuou a dominá-lo, pensando em termos administrativos.

[Vitrúvio Polião e Caio Júlio César] […] no pórtico da literatura romana estão dois autores, nenhum dos quais era escritor profissional. Um arquiteto e um general: Vitrúvio e César. Do ponto de vista literário, não são “grandes escritores”; mais exato seria dizer que não pertencem à literatura. São os representantes mais típicos da “construção”, em oposição à qual nasceu a literatura romana.

Caio Júlio César não é escritor profissional, já se disse. Só escreve para explicar os seus fins políticos. Só dá fatos, a realidade nua. […] O seu contemporâneo Vitrúvio Polião dá vozes de comando às colunas; é criador daquela arquitetura oficial que até hoje forma os centros das nossas capitais. […] na sua obra De Architectura [de Vitrúvio], fala também sobre o serviço de águas e esgotos e sobre todas as public utilities que servem à manutenção da boa ordem administrativa. Em César e Vitrúvio Roma está construída. (p. 70-73)

[Cícero] A tradição classificou as obras de Cícero, distinguindo discursos forenses e parlamentares, tratados filosóficos e cartas. Cícero é jornalista, advogado, político, vulgarizador das idéias filosóficas gregas em Roma; é literato. […] foi um jornalista algo superficial, em todos os setores da sua atividade. Esse “jornalista” exerceu, porém, uma influência tão universal como — além de Platão — nenhum autor da Antiguidade.

Começou a carreira como democrata. Os sete discursos contra o governador corrupto Verres ainda são libelo e defesa de reivindicações populares. A ameaça da revolução social leva-o para o “centro”; naquela época, proferiu os famosos discursos contra o anarquista Catilina. Depois, Cícero é advogado da burguesia, que se conformara com a ditadura temporária.   

Elabora os seus discursos mais artísticos, como Pro Milone; fala, perante ouvintes cultos, contra os demagogos violentos da rua. Mas quando a ditadura se alia aos democratas para estabelecer o totalitarismo, então o intelectual Cícero lança-se na oposição corajosa das quatorze Filípicas contra Marco Antônio. Caiu como vítima das suas convicções pouco coerentes, mas sempre honestas.

Cícero era um grande trabalhador. Em três anos de ócio forçado pela ditadura, escreveu verdadeira biblioteca de escritos filosóficos, que revelam um conhecedor perfeito da matéria. […] Contudo, Cícero não é um filósofo profundo. Assim como na política, não sabe decidir-se entre as ideologias, todas exigentes e demasiadamente dogmáticas. Abraçando o cepticismo moderado da Academia Nova, não rejeita porém inteiramente a religião tradicional, interpretando-lhe o credo como suma de símbolos de verdades mais profundas; levando a vida despreocupada de um epicureu culto e abastado, é no entanto capaz de afirmar sinceramente a moral estóica, ao ponto de morrer assim como ela o exige. Afinal, Cícero, sem criar um sistema filosófico, criou a “filosofia”, a atitude dos intelectuais em muitos séculos.

Cícero sabe observar. Como todos os conservadores, é bom psicólogo. A sua compreensão dos fatos políticos é muito superior à sua atitude algo tímida do homem de letras em face de demagogos e militares violentos. (p. 75-77)

[Lucrécio] Lucrécio […] não tem religião; é materialista, epicureu. Mas o poeta distingue- se dos epicureus prosaicos pelo fato de que a sua própria irreligião se transforma em religião pela poesia. […] Em Lucrécio encontram-se quase todas as teorias do positivismo científico.  

Com Cícero e Lucrécio acaba uma fase decisiva da literatura romana: a tentativa de introduzir espírito filosófico na política ou na religião de Roma não foi, depois, repetida. A literatura romana volta-se para individualismo algo evasionista que lhe convém, produzindo uma série admirável de poetas líricos, poetas menores, sim, mas por isso mais perto da poesia lírica moderna do que qualquer poeta lírico grego. (p. 78-79)

[Catulo] Catulo, o mais velho entre eles, é o maior. […] a comparação com os fragmentos conservados da poesia grega revela a dependência do poeta romano; a originalidade não é o seu lado mais forte. […] Catulo é um apaixonado. […] Catulo é um poeta muito humano. (p. 79-80)

[Ovídio] Com mau gosto infalível, a posteridade elegeu Ovídio, o mais sentimental entre os elegíacos romanos, excessivamente sentimental porque desiludido pela própria fraqueza, e conferiu-lhe uma glória póstuma sem par. […] A diversidade das suas obras revela o virtuose.

[…] Ovídio contaminou a literatura universal, fornecendo-lhe assuntos tediosos; enfim, o tédio tornou-se seu próprio destino. […] Ovídio não é um poeta sério. Nele perdeu-se, pela ambição do mitologismo falso, um notável poeta ligeiro, talvez um humorista à maneira de Heine ou Musset. […] A posteridade tomou-o a sério: já o lê nas escolas a mocidade, há quase doze séculos. Os meninos não lhe compreendem o erotismo; os adultos não lhe compreendem a malícia. (p. 82-83)

[Horácio] O Estado romano esperava os seus Homeros e Píndaros. A literatura latina, porém, por força das suas origens, é individualista e elegíaca. A dois grandes poetas menores, Horácio e Virgílio, coube a tarefa de realizar uma poesia maior. A conseqüência foi o artifício sublime: o classicismo.

Horácio13 é, talvez, o maior entre os poetas menores: sensível sem sentimentalismo, alegre sem excesso, espirituoso sem prosaísmo. Para falar em termos da filosofia antiga, é um eclético, como Cícero e quase todos os romanos: dado ao gozo epicureu da vida, é capaz de atitudes estóicas. Verifica-se certa ambigüidade em Horácio, e esta, aliada ao domínio perfeito e até virtuoso da língua e de todos os metros da poesia grega, criou um poeta autêntico. […] Não é o maior, mas o mais completo dos poetas romanos.

[…] sente ligeiros acessos de melancolia ao pensar na instabilidade das coisas deste mundo: “Carpe diem!”, recomenda, […] Sempre o atrai a retirada para a vida pacífica nos campos […] Os antepassados — pensa o romântico — viveram assim — longe dos negócios da cidade, dedicados aos idílicos trabalhos rurais […]

Em contradição flagrante com a poesia de sentido coletivo celebra a atitude da elite culta, odiando os plebeus vulgares e mantendo-os ao longe […] Do seu posto de observação na vila no campo, prefere satirizar os costumes da capital […] nos dois livros de Sátiras, com sorriso amável, zombando dos avarentos, devassos, parasitos, loquazes, sem ferir a fundo. As Epístolas afirmam a sabedoria do “Nil admirari”, e a famosa Arte Poética, Ad Pisonem, ensina a doutrina do classicismo moderado […]

Nota do leitor: deixo neste link [clique aqui] um fichamento da carta aos Pisões, a Arte Poética de Horácio, na tradução de tradução de Guilherme Gontijo Flores. Arte Poética é o maior poema de Horácio, contendo 476 versos. Trata-se de um “poema epistolar”, uma carta aos Pisões, onde o autor racionaliza conceitos e regras para a criação literária, e também aconselha sobre o ofício, suas responsabilidades e sua ética. Os temas tratados no poema são vários, desde a formação do poeta, métrica, estilos de poemas, conselhos sobre a escrita de peças, elogio e crítica, etc.

É um poeta culto, ligeiramente epígono, ligeiramente romântico. E não só culto, mas que sabe viver, e que se retira, em tempos de guerra civil e perturbação social, para a vila no campo e para a poesia. Estaremos em presença de um evasionista? Não. Ele é antes um grande egoísta. São apenas os seus prazeres e as suas melancolias que o preocupam. Nas tempestades do mundo lá fora, Horácio conserva a cabeça e o bom senso: o que importa é o homem, o indivíduo. Não é romano típico, mas é poeta romano típico. (p. 84-87)

[Virgílio] [ Tito Lívio] Virgílio morreu antes de terminar a última redação dos versos da Eneida; e da obra histórica de Tito Lívio, Ab urbe condita, só possuímos fragmentos […] Isso não tem grande importância, porque as duas obras, nascidas do mesmo impulso de idealizar a história romana, se completam.

[…] não é justo qualificar a história Ab urbe condita como “epopéia nacional em prosa”. Lívio inventou só onde não havia fontes; teve de inventar, porque os romanos haviam esquecido a sua própria história primitiva. […] não pretendeu dar historiografia exata, mas uma história exemplar; não como foi, mas como devia ser.

[Virgílio] Lívio salvou-se pelo idealismo. O mesmo idealismo prejudicou a poesia de Virgílio. O gênio do idílio realista não conseguiu o realismo homérico; só o idealizou. Mas quase criou, com isso, uma poesia ideal.

Basta comparar as Bucólicas e as Geórgicas. As Bucólicas, obra da mocidade, já dão testemunho da predileção de Virgílio pela poesia rústica […] Mas Virgílio não é homem dos campos; tem apenas a nostalgia do homem urbano pela vida rústica […]

O estilo corresponde a esse erro melancólico: é melódico e altamente artificial. Virgílio é responsável pelas inúmeras éclogas da Renascença, com os seus pastores amorosos e as alusões a acontecimentos políticos que preocupam os poetas. Em comparação, o poema didático Geórgicas é realista num sentido elevado. Realismo classicista, talvez realismo clássico. […] as descrições da agricultura, da vida das árvores, da criação de gado, da apicultura, são de um realismo sereno e só parecem idealizadas a leitores acostumados a certa barbaridade da vida rústica em outras regiões.

A esta “Mãe Itália” está dedicada a Eneida. Comparações com Homero, provocadas pela imitação manifesta, não são, no entanto, convenientes. O espírito é diverso. O estilo “rápido, direto e nobre” é substituído por certa dignidade melancólica e monótona; o espírito bélico, pelo civismo e senso de justiça; o antropomorfismo, pela fria religião de Estado. Mas Virgílio é o que Homero não foi e não podia ser: é artista. […] A tarefa de inventar uma tradição oficial do Império Augustano inspirou ao poeta uma utopia das virtudes políticas dos romanos, quase já uma política cristã.

É artista, inventa um mundo ideal, melhor, superior. Apresenta-nos santos e heróis artificiais, porque não existem outros. Não como romano, mas como intelectual romano, Virgílio é da Resistência. Opõe ao caos moral da sua época os ideais do trabalho rústico […] da justiça imparcial […] e do amor ao próximo […] A idéia central da sua obra inteira é a utopia de uma “aetas aurea”: utopia romântica nas Bucólicas, utopia social nas Geórgicas, utopia política na Eneida. Sente, com amargura melancólica, a distância entre esse ideal e a sua época crepuscular […]

[…] o poeta pagão Virgílio, insatisfeito com a religião oficial e os sistemas filosóficos, ergue a voz como um profeta no Advento. Com efeito, todos os séculos cristãos interpretaram a Écloga IV como profecia pagã do nascimento do Cristo. Compararam-se as viagens mediterrâneas de Enéias às do apóstolo Paulo, a fundação da urbs à da Igreja.

[…] em Dante, Virgílio já é o representante da “Razão” pagã, não batizada, mas “naturaliter christiana” e iluminando todo o mundo latino e católico. Chamaram a Virgílio “pai do Ocidente”.

Na literatura universal, Horácio e Virgílio são os maiores entre os poetas menores. Na literatura romana, são os últimos poetas “maiores”. Com eles, acabam as tentativas de poesia de interesse coletivo. Desde então, toda a literatura romana está na oposição. (p. 87-92)

[Sêneca] Dentro da sua atividade literária existe separação semelhante: entre os escritos filosóficos e as tragédias. Estas, as únicas tragédias romanas que subsistem, são obras de epígono; versões fortemente retóricas de peças gregas, substituindo a vida dramática por efeitos brutais, assassínios no palco, aparições de espectros vingadores, discursos violentos, cheios de brilhantes lugares-comuns filosóficos; até nas situações mais trágicas as personagens soltam trocadilhos espirituosos, de ironia cruel. Reconhecem-se, em tudo isso, certas qualidades do teatro espanhol; e Sêneca é espanhol, natural de Córdova […]

O filósofo Sêneca é como se fosse outra pessoa. Escreve em estilo coloquial, embora com energia apaixonada, violando a sintaxe, acumulando as elipses. […] Sêneca está longe da imperturbabilidade estóica que professa. Está possuído pela imagem da morte que em toda a parte o espia, e a recomendação permanente do suicídio, como saída definitiva […] é menos evasão do que tentativa de vencer a morte pela própria morte […] Qualquer oportunidade de “sair” vale como caminho da liberdade.

Em face dessa moral do suicídio, não se compreende bem como tantos séculos puderam acreditar no cristianismo clandestino de Sêneca, inventando até um encontro dele com o apóstolo Paulo. Na verdade, Sêneca não foi influenciado pela religião cristã; foi, muito ao contrário, o cristianismo, em sua atitude ética, que foi profundamente influenciado pelo estoicismo de Sêneca, transformando porém o suicídio em martírio. O que Sêneca tinha em comum com os cristãos da Igreja primitiva era a angústia.

[…] Sêneca, como filósofo, está convencido da possibilidade de vencer o terror pela elevação espiritual […] Sêneca, como poeta, sabe o mundo povoado de demônios e de almas decadentes, já incapazes de resistir.

As tragédias de Sêneca não merecem o desprezo em que caíram de há dois séculos para cá. Elas também são poesia, e grande poesia, cujo eco se encontra em Shakespeare, Webster e Tourneur, e, pudicamente escondido, em Racine. (p. 94-96)

[Juvenal] Juvenal trata, nas suas 16 sátiras, os assuntos de Horácio: hipócritas devassos (sát. II), loquazes importunos na rua (III), efeminação dos ricos (IV), lascívia das mulheres (VI), literatos ridículos (VII), caçadores de heranças (IX), métodos errados de educar os filhos (XIV), orgulho dos militares (XV). Mas Juvenal não tem nada de Horácio; ou antes, Horácio não tem nada de Juvenal. Este estóico duro só pretende dizer a verdade, e neste afã encontra as palavras mais justas, mais definitivas.

Como um Amós ou um Jeremias, Juvenal sentou-se no alto da colina e viu a massa brutalizada, enfurecida pelas paixões mais baixas, dançando e gritando sem perceber a tempestade que se aproximava.  […] Juvenal é um tribuno irritado — se bem que apolítico —, um panfletista de eloqüência torrencial e sem requintes poéticos, um profeta dos subúrbios de Roma, a voz da consciência romana. […] Cumpre não esquecer que a literatura romana é de oposição sistemática. É uma literatura de elegíacos e satíricos, de individualistas.

No exagero profissional dos satíricos existe uma contradição: são pessimistas sistemáticos, acreditando na maldade permanente da natureza humana, e, por outro lado, são pessimistas imperfeitos, convencidos de que o homem é melhor em outras partes — na Germânia, de Tácito — ou que o homem foi melhor nos bons velhos tempos — na República, de Juvenal; só na própria época e na própria cidade do satírico a corrupção é enorme, a catástrofe iminente. (p. 99-102)

[Luciano] O mundo de Luciano é um caos espiritual. […] Luciano é um grande humorista: Erasmo, Rabelais, Swift, Voltaire encontram nesse grego falsificado as melhores inspirações. Mas não é um satírico, porque não conhece critério moral. Não compreende aquilo de que zomba. Dá-se ares de Anti-Homero, mas não passa de animador de um show humorístico na qual homens e deuses dançam o último cancã do mundo greco-romano. (p. 105-106)

[Marco Aurélio] Existem vários autores de língua latina aos quais a posteridade conferiu o título honroso de “o último dos romanos”. Na verdade, no processo vagaroso da decomposição apareceram muitos “últimos romanos” — o “realmente último” será Boécio — mas o primeiro entre eles foi um grego: o imperador romano e escritor grego Marco Aurélio. O imperador, educado por filósofos estóicos, era homem de ação e escritor ao mesmo tempo. Filósofo introspectivo e defensor corajoso das fronteiras setentrionais do Império contra os bárbaros.

Tudo, no destino de Marco Aurélio, é paradoxo: o homem de ação por desespero, e escritor por firme resolução; sendo o último dos grandes individualistas romanos, anota os movimentos da sua alma solitária em língua grega.

Mas Marco Aurélio é romano; quer dizer, quando pensa, não escapa à trivialidade do lugar-comum. Mas dá testemunho de que, no fim da história romana, até o imperador se encontra sozinho em face da realidade impenetrável. E ela aparece-lhe na figura da Morte. O livro inteiro das Meditações foi escrito para afugentar a obsessão desse homem poderoso com a idéia da morte. A idéia estóica da coesão na Natureza, do determinismo razoável que rege tudo, não lhe serve para aprender a viver, e sim a morrer. Ao contrário do que muitas vezes se pensava, Marco Aurélio, que fez mártires, nada tem de cristão; o que o faz parecer cristão é a clemência meio indiferente de uma melancolia que ele sabe nada adiantar. […] a sua eloqüência simples e convincente de uma idéia fixa revela a sinceridade de um grande poeta.

Quem não pode ser incluído entre os “últimos romanos” são os últimos poetas romanos. Aqui, sim, há decadência, não apenas nos fatos exteriores, mas também nos espíritos. (p. 107-108)

[Paganismo X Cristianismo] Os últimos pagãos responsabilizaram o cristianismo pela queda da civilização; e é preciso admitir que os Padres da Igreja fizeram tudo para confirmar a acusação. Ou antes, escreveram como se fosse assim: um Agostinho, que chamou às virtudes dos pagãos “vícios brilhantes”; um Jerônimo, que explicou o prazer na leitura de Cícero pela inspiração do Demônio. Mas a vontade e os efeitos não coincidiram. Para convencer e converter o mundo da civilização antiga, não bastava a “sabedoria da infância” dos cristãos primitivos; chegou-se a um compromisso, pondo-se a filosofia e as letras a serviço do Deus cristão e da sua teologia. Começa a pré-história do humanismo europeu no Oriente cristão.

Os fundamentos do compromisso foram lançados no Oriente grego. Já no começo do século II, o erudito Clemente de Alexandria introduziu na teologia conceitos do platonismo e do estoicismo […]  

Entre esses extremos da profanação e da fuga, o cristianismo salvou-se pelo compromisso com a civilização pagã. Não era fácil encontrar o meio-termo. Até para nós, hoje, não é muito clara a atitude de um Nonnos37, bispo de Panópolis, na Egípcia, e autor de uma paráfrase metrificada do Quarto Evangelho, e, ao mesmo tempo, de uma enorme epopéia em 40 livros, Dionysiaka, cheia de embriaguez pagã até à perturbação de todos os sentidos […]

No Ocidente, o compromisso entre cristianismo e civilização pagã foi concluído pelos inimigos apaixonados dessa civilização: Tertuliano, Ambrósio, Jerônimo, Agostinho, os Padres da Igreja latina. Mas estes já são homens “modernos”. O último romano cristão é Boécio. (p. 110-112)

[Boécio] Mas seria Boécio um cristão? Existem tratados teológicos de sua autoria: De Trinitate, Contra Eutychen et Nestorium, e outros. Mas nas obras mais importantes de Boécio, até na Consolatio Philosophiae, que trata de Deus e do destino humano, não se encontra a mínima alusão ao cristianismo.

O romano Boécio não pergunta pelo Império. Está preocupado apenas com a sua própria alma. É individualista, é romano. A Consolatio Philosophiae é um pendant das Meditações de Marco Aurélio, apenas sem medo da morte. (p. 112-113)

Capítulo III: o cristianismo e o mundo

As obras dos escritores cristãos do século V, que foi o século da grande catástrofe, estão cheias de lamentações sobre a situação do mundo mediterrâneo. As cidades estão destruídas, desertos os campos, foram depostas as autoridades, vazias estão as escolas. “A cultura das letras”, dirá o bispo e historiógrafo Gregório de Tours, “agoniza, ou antes, desaparece nas cidades de Gália. No meio de atos bons ou ruins, quando a ferocidade das nações e o furor dos reis estão desencadeados, quando a Igreja é atacada pelos heréticos e defendida pelos fiéis, e quando a fé cristã, ardente em muitos corações, enfraquece em outros, quando as instituições religiosas são saqueadas pelos perversos, então não se encontrou nenhum homem de letras para descrever esses acontecimentos, nem em prosa, nem em verso. E muitos dizem, gemendo: Ai do nosso tempo, porque o estudo das letras desaparece entre nós, e ninguém é capaz de descrever as coisas desta época”.

Santo Agostinho construirá uma filosofia da História para provar que a catástrofe do mundo não é um ato de injustiça divina e, pelo contrário, obedece aos planos superiores da Providência; o seu discípulo Orósio pretenderá demonstrar que toda a história humana, já antes do advento do cristianismo, é um campo de batalha, destruição, crimes e horrores de toda a espécie; Salviano já admitirá que o cristianismo não conseguiu muita coisa para melhorar o mundo e que a decadência é irremediável, a catástrofe completa e merecida.

Mas havia outros espíritos, capazes de “descrever as coisas desta época”. Porque neles um novo conteúdo enchera as formas gramaticais da velha língua; eram eles mesmos, aqueles escritores cristãos.

Um observador imparcial, não perturbado pela nostalgia convencional do “paganismo alegre”, nem pela mentalidade apocalíptica dos escritores eclesiásticos, admitirá a existência de uma notável atividade literária nos séculos do cristianismo vitorioso e da invasão dos bárbaros; de uma literatura rica, embora não grande, que contou com personalidades tão extraordinárias como Jerônimo e Agostinho, que criaram formas inteiramente novas de expressão literária, nos hinos da Igreja, e que criaram, enfim, uma das maiores obras, das mais permanentes da literatura universal de todos os tempos: a liturgia romana.

A mentalidade cristã dos primeiros séculos percorreu três fases distintas, coordenadas como uma evolução dialética. No período das catacumbas, o espírito cristão é de uma introversão tão completa que a expressão se torna silêncio […] A segunda fase é a do encontro do cristianismo com o mundo: a literatura patrística. A terceira fase, após a queda definitiva do Império, é o novo ensimismamiento: o cristianismo se retira para dentro dos muros das igrejas, para encontrar aí a sua expressão genuína: os hinos e a liturgia. (p. 114-116)

[Ambrósio] Ambrósio, o poderoso bispo de Milão, ao qual a tradição atribui a criação do hino litúrgico. Ambrósio era natural da Gália, da mais romana das províncias romanas. Em De Officiis ministrorum apresenta um sistema bem organizado, quase em parágrafos, da conduta moral do clero; aplicação razoável da moral estóica do De officiis, de Cícero. […] Ambrósio era mais homem de ação do que escritor; nisso, também, é romano. (p. 117-118)

[Jerônimo] Escritor, literato até, é Jerônimo4. Homem de vastas atividades, quase febris, fazendo inúmeras viagens, escrevendo, traduzindo, comentando, trocando cartas com papas e religiosas, dando conselhos a toda a gente, grande trabalhador, que acabou seus dias num convento, no deserto da Judéia. Odiava a literatura pagã, na qual fora educado, e é o literato mais típico entre os Padres da Igreja. A sua maior obra é um trabalho de estilística, a tradução latina da Bíblia, a Vulgata, que alcançou autoridade canônica na Igreja Romana. Com essa obra, Jerônimo criou uma língua nova e uma nova literatura. Prestou ao latim medieval o serviço que os poetas da idade augustana tinham prestado à literatura imperial, naturalizando em Roma as letras gregas. Durante mais de um milênio, a Europa inteira rezou na língua de Jerônimo, que é, contra a sua vontade, a língua de Virgílio, e não inteiramente indigna dele. A Vulgata é a Eneida do cristianismo. Jerônimo, anti-humanista furioso, é o primeiro grande humanista europeu. Valéry Larbaud exalta o autor da Vulgata como o rei ou padroeiro de todos os tradutores.

Chegou, enfim, o momento em que a aliança entre a Igreja e as letras pagãs se rompeu: na realidade, porque o Império caiu; na literatura, porque um espírito poderosíssimo destruiu o equilíbrio. (p. 118-119)

[Agostinho] Agostinho é uma das maiores personalidades da literatura universal; muitos, porém, não o considerarão “simpático”, e a culpa é dele mesmo. É o destino de todos os que, como ele nas Confissões e mais tarde Rousseau e Strindberg, contaram com sinceridade irreverente a própria vida: a mocidade devassa, o estágio entre os adeptos da estranha seita dos maniqueus, os estudos de retórica e a vida literária, os remorsos e angústias que duraram anos terríveis, enfim a conversão, a vocação sacerdotal, o bispado, as lutas contra heréticos de toda a espécie, as vitórias políticas; no fim da vida, Agostinho é “magnus sacerdos”, o rei episcopal da África cristã, morrendo no momento em que a sua província e a sua Igreja se desmoronavam sob os golpes dos bárbaros.

Agostinho é um anarquista, procurando a ordem, sabendo que precisa nascer outra vez, como homem diferente. É da raça dos “twice born”, à qual pertencem os maiores gênios religiosos da Humanidade, um Paulo, um Lutero, um Pascal.  Para justificar perante Deus e os homens a sua natureza ambígua, o teólogo Agostinho tem de responsabilizar uma força exterior e mais forte que as suas próprias forças: a Graça, esse seu conceito teológico que será, depois, suscetível de tantas interpretações ambíguas. Esse homem fortíssimo precisa sempre de um apoio de fora: daí provém a sua confiança ilimitada na autoridade da Igreja Romana; daí o seu susto em face da catástrofe do Império daí a necessidade imperiosa de substituir a derrotada “civitas terrena” pela “civitas Dei”, objeto do seu grande mito filosófico-histórico. Agostinho está contra o Império e não pode viver fora do Império: é um romano.

O que o distinguiu, porém, dos outros romanos foi ser um santo, e a demonstração disso está no “humano, humano demais” das Confissões. Um santo não é um anjo, e sim um homem. Agostinho foi o primeiro, em todos os tempos, a expor a sua humanidade fraca, falível e até antipática, pelo lirismo exuberante e efusivo daquele grande livro. (p. 119-120)

[O hinário da Igreja] O hinário6 da Igreja latina é a primeira obra da literatura moderna. Um espírito diferente do espírito da Antiguidade greco-romana cria formas independentes […]

A nova estrutura do latim falado é sintoma de uma nova alma que o fala. Um autor anônimo, a alma coletiva, inventa uma nova poesia, os versos de 4 diâmetros jâmbicos, reunidos em estrofes de 4 linhas; primeiro exemplo da poesia “moderna”.

Os hinos mais antigos da Igreja atribuem-se a Ambrósio. Em geral, esta tradição foi abandonada pela crítica. Do corpus dos hinos ambrosianos, certamente a maior parte não pertence ao grande bispo de Milão.

Como a aurora, cuja luz entra pelas vidraças da igreja, aparece nos hinos ambrosianos a luz de um novo dia, e com ele uma inovação estranhíssima, “moderna”, totalmente desconhecida da Antiguidade: a rima. (p. 120-122)

[Prudêncio] O verdadeiro Ambrósio da poesia latina cristã é o espanhol Prudêncio, o maior poeta da antiga Igreja Romana. Já foi comparado a Horácio, mas é mais sério, e a Píndaro, mas é mais humano. […] Prudêncio, apesar das tentativas de poesia narrativa, é essencialmente um poeta lírico. […] Prudêncio é um dos raros poetas líricos que conseguiram criar um mundo completo de poesia.

A língua latina salvara o novo espírito poético. O novo mundo lírico encontrou apoio real no trabalho monástico e na organização eclesiástica: dois elementos herdados da realidade romana. (p. 122-124)

[Gregório Magno, o papa] […] Gregório construiu um abrigo materno para as almas, a Igreja medieval, trabalhando como um monge de São Bento e governando como um “consul Dei”. Era um espírito sóbrio, seco, prático; um romano. Estabilizou o mundo lírico dos hinólogos, construindo-lhes uma catedral invisível. (p. 124-125)

[“Dark Ages”] Foi William Robertson, historiógrafo inglês do século XVIII, quem criou a expressão “Dark Ages”, ou “séculos obscuros”, para qualificar a época em que a “Razão” e as “boas letras clássicas” não iluminaram o mundo. A expressão mudou várias vezes de sentido, estendendo-se à Idade Média inteira, ou aos séculos IX, X e XI, entre a queda do Império carolíngio e as Cruzadas, ou então aos séculos VI, VII e VIII. Do ponto de vista da história literária, este último sentido da expressão é o mais razoável. A literatura romana acabara e as literaturas modernas ainda não tinham começado, nem em língua latina nem nas línguas nacionais. O vazio explica-se pela destruição geral, a perda de quase todos os bens materiais, inclusive os benefícios de uma administração organizada.

Antes dos “séculos obscuros” e depois, as maiores devastações materiais não impediram o cultivo das letras, e a hinografia ambrosiana e pós-ambrosiana, literatura original e poderosa, constitui um primeiro desmentido àquele inglês incompreensivo. (p. 125-126)

[A liturgia] Após a “suspensão da descrença”, ninguém negará à liturgia o caráter de grande obra literária que marca os séculos VI e VII, iluminando-lhes a “obscuridade”.  

Após a “suspensão da descrença”, ninguém negará à liturgia o caráter de grande obra literária que marca os séculos VI e VII, iluminando-lhes a “obscuridade”. […] O verdadeiro autor da liturgia é a Igreja.

[…] a palavra é a essência da liturgia. A liturgia é essencialmente uma composição literária, sem consideração de efeitos teatrais ou pictórico-musicais. Talvez se entenda melhor o sentido da liturgia nas missas rezadas na alta madrugada, sem música, quando o sacerdote só murmura as palavras, e o silêncio absoluto em torno do sacrifício é menos efetuoso e mais profundo.

Como todas as grandes epopéias, a liturgia constitui um mundo completo — criação, nascimento, vida, morte e fim – dentro dos muros da igreja. Mundo fechado, cuja literatura é “exótica” num sentido diferente do da pagã: literatura de outro mundo. […] A epopéia eclesiástica da liturgia decorreu só dentro dos muros. Lá fora, havia os bárbaros e a destruição. (p. 126-132)

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Published by Anderson C. Sandes

Poeta, cronista, ensaísta, autor de Baseado em Fardos Reais; Arte e Guerra Cultural: preparação para tempos de crise; organizador da Antologia Quando Tudo Transborda. Pedagogo. Vivo de poesia pra não morrer de razão.

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