Poesia

Milagre de merda

Balthasar Denner [A Gardener], 1735 (Detalhe)

Terna flor
Que adornada de esterco
De dejetos fétidos
De abortos intestinais
De desarranjos, não arranjos
Do putre rejeito dos corpos
Cresce linda e cheirosa
A despeito e por causa
Dessa massa fedorenta

Poesia

Do cuidado

Pierre Auguste Cot [The Storm], 1880 (Detalhe)

Cuidado com as flores!
Não por serem flores,
mas porque nem tudo são flores.

Conserva o que tens!
Para que não te seja
Arrancado o que ainda não tens.

Poesia

Somos sonhos

Claude Monet [Bazille and Camille (Study for "Déjeuner sur l'Herbe")], 1865 (Detalhe)

Sonho acordado
desejando.
Desejando também
sonhar dormindo
Não apenas sonhar,
mas sonhar contigo.

Poesia

O cri cri

Antoine Watteau [The Italian Comedians], 1720 (Detalhe)

Repousam os versos
Onde o poeta não pode descansar
Versos profundos voam
Os de superfícies e os superficiais
Vão às profundezas
E morrem sufocados
Sufocados em terra

Poesia

Pobres

Jean-Léon Gérôme [Diogenes], 1860 (Detalhe)

Ali tinha um pobre que nada tinha
Acolá, outro pobre, que tudo tinha
Semelhanças?
Ambos nada tinham
Diferenças?
O de ali achava que não tinha
O de acolá sentia que não tinha

Poesia

Ocupados

Salvador Dalí [The Persistence of Memory], 1931 (Detalhe)

Toda essa gente ocupada demais
Pra onde vão?
Espero que pra os infernos
Ouvem “boa noite”
E dizem “boa”
Não perdem tempo com conversas do tipo
São ocupados demais

Poesia

Jubileu de que

Vincent van Gogh [Wheatfield with Crows], 1890 (Detalhe)

Aquele que é profundo
Sofrerá profundamente
Fará tudo pelas profundezas
Pagará o preço por sentir em dobro

Poesia

Cosmos jardim

Otto Stark [Garden in Paris], 1885 (Detalhe)

Bem arado foi o céu

Enchido com sementes de estrelas
Como serão suas flores?
Rosadas de luz? Cheias de cores?
Quem as colherá? Quem escolherá?

Poesia

Eu oposto

Jacob Jordaens [Two Studies of the Head of an Old Man], 1630 (Detalhe)

Por vezes durmo na clave de sol
E acordo na clave de fá
E tudo mexe…
Tudo sai do lugar

Nesses dias prefiro um banho frio
E uma janta quente
Tudo como não é de costume

Poesia

Humor solitário

Rembrandt [Titus, the Artist's Son], 1660 (Detalhe)

Algo me trouxe alegria
E resgatou o meu riso
Como qualquer bobo que ri
Ri

Como quem sente cheiro de café
Como quem ouve as primeiras palavras de criança
Como o por do sol que traz o Shabbat
Como um “eu te amo” antes de dormir