Poesia

Sublimação

Joshua Reynolds [David Garrick Between Tragedy and Comedy], 1761 (Detalhe)

A tinta que ora jorra o impresso
fora hemorrágica em outrora,
pulsa produtividade tal
da inatividade vital de agora.
Ah, vintém poupado ao bolso,
não vai ao divã, ao fosso,
sublimou da mágoa ao gozo
o dente amarelo restaurado.

Conto

O sonho de um homem ridículo — Fiódor Dostoiévski

Vasily Perov [Retrato de Dostoiévski], 1872 (Detalhe)

Narrativa fantástica, 1877.

I

Sou um homem ridículo. Agora já quase me têm por louco. O que significaria ter ganho em consideração, se não continuasse sendo um homem ridículo. Mas eu já não me aborreço por causa disso, agora já não guardo rancor a ninguém e gosto de toda a gente, ainda que se riam de mim… sim, senhor,  agora, não sei por quê, mas sinto por todos os meus próximos uma ternura especial. Teria muito gosto em acompanhá-los no vosso riso… não precisamente nesse riso à minha custa, mas sim pelo carinho que me inspiram, se não me fizesse tanta pena vê-los. É pena que não saibam a verdade. Oh, meu Deus! Quanto custa isso de ser um só a saber a verdade! Mas isto não compreendem eles. Não, nunca compreenderiam isto.

Poesia

Chega a noite

Vincent van Gogh [Starry Night Over the Rhône], 1888 (Detalhe)

Chega a noite
Vão-se as moscas
Voltam-se os mosquitos
As primeiras zumbirão suas filosofias
Larvais em outros ares
Os segundos querem sangue
E ferem mais fundo
Mais profundo na gente
Que bate, que bate
Que mata

Poesia

Das memórias que perdi

Hendrik G. Pot [The Coin Collector], 1655 (Detalhe)

Quem seria eu agora,
sem saber quem fora em outrora?
Se dantes fui moço,
tento debalde recordar das paixões…
[…] oxalá! Que eu tenha tido, meu Deus!

Poesia

Pouco sou

Jean-Honoré Fragonard [Young Girl Reading], 1770 (Detalhe)

Por mais que eu foleasse
todas as páginas,
me enterrariam sem
de nada eu saber.
Mas de um nada muito grande…

Poesia

Amarelo

Vincent van Gogh [Vase with Red and White Carnations on a Yellow Background], 1886 (Detalhe)

Começam a amarelar as fotos
dos tempos pueris.
(Bons tempos…)
Amarela o sorriso, 
amarelam alguns livros, 
amarelam as cartinhas,
(onde quer que elas estejam…)
amarelam as memórias 
que não são mais tão claras,
e os ossos, e a pele… 

Poesia

Ave preta

Imagem: Francisco Souza / Flickr (com edição)

Oh, aquela ave preta
sobre galhos rijos cinzentos.
Oh, meu sertão que se encontra verde,
tudo um pouco mais belo.
Mas a ave insiste co’a morte
ao pousar naqueles galhos podres.
Podres, mas rijos.

Poesia

Do ser o que é

Rembrandt [A Young Scholar and his Tutor], 1629–1630 (Detalhe)

Concentro-me em algaravias amiúdes 
De arquétipos mui caros…
Tento ouvir a todos.
Alguns corifeus de meus valores amados,
Valores escritos em lábaros…
Que se perderam em meio à escatologia,
(E tantas outras “gias”)

Poesia

Da vida

Jacob van Hulsdonck [Still Life with Lemons, Oranges and a Pomegranate], 1620–1640 (Detalhe)

Já vi alguns invernos
Já vi alguns infernos
Vi infernos em invernos 
E invernos em infernos

Poesia

[Des] Fiz-me

Fogo na caatinga
Fiz-me pardal e voei
Verde na serra
Desfiz-me das asas, pousei
Era belo o caminho
Fiz pra mim botas… e andei
Fresco e calmo era o lago
(… não sei nadar)
Tive medo, e nada virei
Odiava o medo
Fiz-me coragem e nadei
E na coragem… me afoguei